O julgamento realizado
pelo Supremo Tribunal Federal da AP 470, popularmente conhecida como
“mensalão”, tem trazido à discussão – e de forma às vezes acalorada, quase com ofensas
pessoais -, especialmente na fase de dosimetria da pena, a aplicação de alguns
princípios de Direito Penal. Alguém já disse alhures que, por vezes, a mais
alta corte de justiça brasileira julga politicamente e não juridicamente. Isso
parece que tem acontecido em alguns pontos desse julgamento já batizado como o
mais rumoroso do STF. É óbvio que, para que fosse feita uma análise mais
profunda, e séria, o acórdão tivesse sido publicado, bem como os prováveis
votos vencidos, ou seja, as manifestações dos ministros que tenham porventura
discordado da maioria. (Cumpre esclarecer que os ministros que absolveram
alguns réus, por óbvio não participarão da fase do julgamento que imporá as
penas.) Porém, lendo a denúncia e assistindo a algumas sessões do pleno torna
possível fazer estas observações.
O mais importante
princípio constitucional[1]
aplicável ao Direito Penal é o da legalidade ou da anterioridade da lei ao fato
(da legalidade: “não há crime sem lei...”; da anterioridade da lei ao fato:
“...anterior que o defina”), constante do artigo 5º, inciso XXXIX, da
Constituição da República Federativa do Brasil, bem como do artigo 1º
(significativamente) do Código Penal. Deixou de ser princípio somente e é lei.
Um dos desdobramentos da aplicação dessa norma penal não incriminadora é que a
lei penal jamais poderá atingir fatos praticados anteriormente à sua entrada em
vigor. Para evitar qualquer tentativa de escamotear isso, norma constitucional
expressamente proíbe que a norma penal
produza efeitos retroativos, exceto para beneficiar o réu (artigo 5º, inciso XL), bem como, de modo não tão direto, norma infraconstitucional
(Código Penal, artigo 2º e seu parágrafo 1º). Ou seja, se a lei for modificada
tornando-se mais severa (“novatio legis in pejus”), ela não poderá aplicar-se a
fatos praticados antes de sua modificação.
Pois é: o STF está enfrentando tal problema já que o
Código Penal sofreu uma alteração quanto aos crimes de corrupção passiva (artigo
317) e corrupção ativa (artigo 333), tendo a sua pena sido aumentada e tal alteração
deu-se no ano de 2003, mais especificamente no dia 12 de novembro (Lei nº
10.763). Por exemplo: João Paulo Cunha
já foi condenado pelo crime de corrupção passiva e a vantagem indevida
consistiu no percebimento da quantia de 50 mil reais. A denúncia descreve que
tal fato se deu no dia 4 de setembro de 2003, ou seja, mais de 2 meses antes da
reforma da lei – uma autêntica “novatio legis in pejus”. A sua pena não foi ainda individualizada. Já Marcos
Valério já foi condenado por vários crimes, sendo alguns deles o de corrupção
ativa – artigo 333 do CP -, pelos quais lhe foi imposta a pena de 14 anos, 10
meses e 18 dias, inclusive o referente aos 50 mil reais pagos ao petista João
Paulo, ocorrido, como já dito, antes da reforma da lei e, pelo que noticia o
“site” do STF, por haver dúvida quanto à exata data da ocorrência do crime de
corrupção ativa – se antes ou depois da modificação do Código Penal -, optaram
os ministros pela aplicação do artigo original, sem modificação. Detalhe: por
conta da dúvida quanto à data do cometimento do delito. Originariamente, o
ministro relator, com base na lei modificada, aplicava uma pena de 4 anos e 8
meses de reclusão (na lei modificada, a pena é de 2 a 12 anos; na anterior, de
1 a 8).
Ainda
quanto aos crimes cujas normas incriminadoras foram modificadas, os de corrupção,
tanto passiva, quanto ativa, cabem algumas poucas observações que podem influir
nos temas aqui tratados. Ambos os crimes são doutrinariamente classificados
como formais (no dizer de Nelson Hungria, “de consumação antecipada”), ou seja,
não há um destaque lógico e cronológico entre a conduta a resultado. Por
exemplo, na corrupção passiva, na modalidade verbal “solicitar” (vantagem
indevida): basta a mera solicitação para que o crime se tenha por consumado. Se
a vantagem for paga, ocorrerá aquilo que Francesco Carrara chamou de “exaurimento”
do crime. Muitas vezes – as mais das vezes, na realidade -, o pagamento da
propina se dá após a solicitação e pode ocorrer que a solicitação ocorra sob a
égide de uma lei e o pagamento sob a égide de outra e há que se fazer uma distinção:
se o pagamento for feito sob a égide da nova lei e esta for mais severa, ela
não será aplicada, permanecendo a aplicação da lei do fato; caso contrário, se
for uma lei mais branda, esta será aplicada.
Outro princípio
constitucional – também já passou da fase de princípio para a de lei, tanto
constitucional, quanto infraconstitucional -, o da individualização da pena,
está sendo discutido de forma acalorada no presente julgamento, especialmente
entre os ministros relator e revisor. Mas isto será abordado oportunamente,
para não tornar este texto muito extenso.
[1].
Conforme Miguel Reale, os princípios são “verdades ou juízos fundamentais, que
servem de alicerce ou de garantia de certeza a um conjunto de juízos, ordenados
em um sistema de conceitos relativos a
dada porção da realidade”(“Filosofia do Direito”, volume 1, página 54, Saraiva,
7ª edição, 1975).
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