Pular para o conteúdo principal

A omissão de socorro, a ausência do médico no plantão e a atuação da PM


Recente norma da Secretaria de Segurança Pública do estado de São Paulo proíbe que policiais militares prestem socorro a vítimas de crimes violentos, bem como de “confrontos” com a Polícia (poder-se-ia dizer “com a Polícia Militar”: somente ela registra esses embates). Ela “estourou” como uma “bomba” na mídia. Dias antes, outra “bomba”: uma garota atingida por uma “bala perdida” (em Direito Penal, “erro na execução”) morreu no hospital ao qual fora transportada porque o médico especialista plantonista havia faltado ao trabalho.
            Os dois temas se entretecem no título “omissão de socorro” e algumas palavras poderão lançar alguma luz sobre o tema e assim facilitar a sua compreensão.
            A omissão de socorro é crime e a sua definição legal está no artigo 135 do Código Penal: “deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública”. A pena cominada é de detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa. Trata-se, logo se vê, de infração penal de menor potencial ofensivo, o que permite, nos termos da Lei 9.099/95, a transação penal.
            Levando-se em conta que essa norma penal é de 1940, tendo entrado em vigor a 1º de janeiro de 1942, dessa época até os presentes dias os primeiros socorros sofreram um grande aprimoramento, o que é facilmente constatável presenciando-se o atendimento médico feito pelos especialistas. Constatei isso na prática quando fui Procurador do Estado chefe da Seccional de Limeira (no longínquo ano de 1983): o cargo me obrigava a fazer parte da Defesa Civil da cidade e, por conta disso, participei de um curso de primeiros socorros.
            Pois bem: voltando à análise da norma, embora o “nomen juris” seja “omissão de socorro”, o verbo do tipo é “prestar assistência” e não “socorrer” e aparentemente de forma alternativa está “ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública”. Diz a doutrina que não se trata de conduta alternativa: a assistência deve ser prestada. Porém, deve ser prestada “quando possível fazê-lo sem risco pessoal”.  Aqui cabem duas considerações: a) o Direito Penal não exige – nem poderia – que a pessoa se coloque em risco pessoal para prestar assistência a outrem; b) possível fazê-lo significa, conforme a melhor doutrina, a possibilidade real-física de prestar a assistência. No item (b)  cabe a conduta do médico: ele não estava presente no plantão, portanto, fisicamente não poderia prestar assistência (a doutrina dá o “exemplo de manual” [a expressão é de Claus Roxin] do salva-vidas que falta ao trabalho no clube e nesse dia uma criança morre afogada na piscina). No entanto,  o médico le foi indiciado como violador do artigo 135 do Código Penal. No Rio, tudo é possível...
            Os policiais militares que “socorrem” (o verbo deve vir mesmo entre aspas) as vítimas não estão prestando assistência  e sim somente transportando as pessoas que, na quase totalidade dos casos, foram feridas por eles mesmos. Os que leram o livro “Rota 66”, com subtítulo “A história da polícia que mata”, de Caco Barcellos[1], sabe que esse “socorro” é muitas vezes fictício: os policiais militares colocavam os feridos por eles no “camburão” e ficavam trafegando até que a pessoa morresse (“entrasse em óbito”, no jargão policial). Ademais, o local  em que ocorrem crimes deve ser mantido, conforme estabelece o artigo 6º, inciso I, do Código de Processo Penal, e muitas vezes a simples remoção da vítima já altera esse local, quando não é feita a propósito.
            Não há dúvida que a norma é polêmica, tendo recebido ataques de policiais militares, o que é óbvio, e recebido elogios de especialistas em medicina emergencial, o que é evidente. O tempo, porém, é que dirá acerca do seu acerto. 




[1]. Caco Barcellos recebeu inúmeras ameaças por conta da publicação desse livro. A Globo transferiu-o para Londres, como correspondente, para garantir a sua integridade.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A assessora exonerade

Um fato tomou a atenção de muitos a partir de domingo quando uma assessora “especial” do Ministério da Integração Racial ofendeu a torcida do São Paulo Futebol Clube e os paulistas em geral. Um breve resumo para quem não acompanhou a ocorrência: a final da Copa do Brasil seria – como foi – no Morumbi, em São Paulo. A Ministra da Integração Racial requisitou um jato da FAB para vir à capital na data do jogo, um domingo, a título de assinar um protocolo de intenções (ou coisa que o valha) sobre o combate ao racismo (há algum tempo escrevi um texto sobre o racismo nos estádios de futebol). Como se sabe, as repartições públicas não funcionam aos domingos, mas, enfim, foi decisão da ministra (confessadamente flamenguista). Acompanhando-a veio uma assessora especial de nome Marcelle Decothé da Silva (também flamenguista). Talvez a versão seja verdadeira – a assinatura do protocolo contra o racismo – pois é de todos sabido que há uma crescente preocupação com o racismo nos estádios de fu

Por dentro dos presídios – Cadeia do São Bernardo

      Tão logo formado em Ciências Jurídicas e Sociais e tendo obtido a inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil, prestei auxílio num projeto que estava sendo desenvolvido junto à Cadeia Pública de Campinas (esta unidade localizava-se na avenida João Batista Morato do Canto, n° 100, bairro São Bernardo – por sua localização, era apelidada “cadeião do São Bernardo”) pelo Juiz de Direito da 2ª Vara Criminal (que cumulava a função de Corregedor da Polícia e dos Presídios), Roberto Telles Sampaio: era o ano de 1977. Segundo esse projeto, um casal “adotava” uma cela (no jargão carcerário, “xadrez”) e a provia de algumas necessidades mínimas, tais como, fornecimento de pasta de dentes e sabonetes. Aos sábados, defronte à catedral metropolitana de Campinas, era realizada uma feira de artesanato dos objetos fabricados pelos detentos. Uma das experiências foi uma forma de “saída temporária”.       Antes da inauguração, feita com pompa e circunstância, os presos provisórios eram “aco

Matando por amor

Ambas as envolvidas (na verdade eram três: havia um homem no enredo) eram prostitutas, ou seja, mercadejavam – era assim que se dizia antigamente – o próprio corpo, usando-o como fonte de renda. Exerciam “a mais antiga profissão do mundo” (embora não regulamentada até hoje) na zona do meretrício [1] no bairro Jardim Itatinga.             Logo que a minha família veio de mudança para Campinas, o que se deu no ano de 1964, a prostituição era exercida no bairro Taquaral, bem próximo da lagoa com o mesmo nome. Campinas praticamente terminava ali e o entorno da lagoa não era ainda urbanizado. As casas em que era praticada a prostituição, com a chegada de casas de família, foram obrigadas a imitar o bairro vermelho de Amsterdã:   colocar uma luz vermelha logo na entrada da casa para avisar que ali era um prostíbulo. Com a construção de mais casas, digamos, de família,   naquele bairro, houve uma tentativa de transferir os prostíbulos para outro bairro que se formava, mais adiante