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Internação compulsória de drogadictos


             Duas capitais brasileiras estão vivendo presentemente um grave problema com a drogadicção do “crack”: diariamente os noticiários exibem um exército de molambos, verdadeiros zumbis, em guetos consumindo desbragamente essa substância entorpecente.
            Uma das providências pensadas pelas autoridades é a internação compulsória dessas pessoas em instituições de tratamento, mas ouviram-se vozes contra essa medida. Essas vozes podem ser divididas em duas ordens: a médica e a jurídica. Dizem alguns especialistas da área médica que essa modalidade de tratamento não produz resultados: tão logo a pessoa é desinternada, ela retorna ao consumo.
            A segunda, a jurídica, é a que tem mobilizado mais o noticiário: afinal, como eu já disse em escritos anteriores, o Brasil é um país de bacharéis em Direito – para não dizer de adivinhos.
            Um dos pilares do Estado Democrático de Direito é a dignidade da pessoa humana, conforme está escrito na Constituição da República Federativa do Brasil (artigo 1º, inciso III). E entre os direitos e garantias fundamentais está o de não ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei (artigo 5º, inciso II). É a clara demonstração da adoção do princípio da legalidade. A liberdade do exercício da vontade esbarra na lei, valendo lembrar a definição de Bluntschli: “liberdade é a possibilidade de exercer a própria vontade nos limites do direito”. Se uma pessoa for constrangida a fazer algo que a lei não permite ou a não fazer algo que a norma permite cometerá o crime de constrangimento ilegal, artigo 146 do Código Penal.
            De outra parte, a autolesão é impunível: se uma pessoa quiser imitar o famoso pintor e cortar uma das orelhas, pode. Esteticamente não ficará bom; fisicamente, também não, pois a impedirá de usar óculos. A autolesão somente é punível quando praticada para recebimento de seguro, uma das modalidades de estelionato. A mesma ideia pode ser aplicada – e ampliada – com relação ao suicídio: a pessoa pode tirar a própria vida  se quiser. O suicídio é impunível: o que se pune é a participação no suicídio alheio.
            Porém, o Direito Penal brasileiro em duas oportunidades permite que haja uma intervenção contra a autonomia da vontade da pessoa para preservar a sua vida. Estas duas modalidades evitam que o constrangimento seja considerado ilegal – e, portanto, crime – quando for intervenção médica ou cirúrgica “sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida[1]”, bem como “a coação para impedir o suicídio”. É o que está escrito no artigo 146, § 3º, do Código Penal, e  a exclusão está no próprio texto legal: “não se compreendem na disposição deste artigo” as duas condutas expostas anteriormente. Como exemplo da primeira exclusão – e não se trata de “exemplo de manual”- estão as transfusões de sangue que determinada religião não permite. Existem exemplos no cotidiano jurídico.
            Surge inevitavelmente a pergunta: o comportamento do drogadcito de “crack” enquadra-se em algum desses dispositivos que permitem a violação da vontade da pessoa? Pode o Estado, ainda que seja pelo Estado-juiz, obrigar o viciado a tratar-se? A resposta é não e deve ser levado em conta, ainda, que a lei de drogas (nº 11.343/06) pune muito brandamente o porte de droga para consumo próprio, e uma das “punições” é “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”.  Outra, que parece que os magistrados têm receio de aplicar, é a “advertência sobre os efeitos das drogas”. A terceira, que tem mesmo feição de punição, é a “prestação de serviços à comunidade”.
            Sob a aparência de estar salvando vidas, mais parece que o Estado quer tirar das vistas públicas essa horda de infelizes aos quais faltaram, antes de mais nada, melhores condições de vida; em outras palavras: ter a sua dignidade respeitada.




[1]. Alguns doutrinadores criticam o emprego da expressão “perigo de vida”, “aduzindo que deveria ser “perigo de morte”. A mídia encampou essa ideia e tem se expressado como pensam os doutrinadores. É uma bobagem: o perigo é de perder a vida.

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