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O valor da vida... ou de uma refeição.


No sentido vulgar, não-filosófico melhor dizendo (para que não haja confusão com o sentido da palavra “vulgar), o vocábulo “valor” tem amiúde sido confundido com o vocábulo “preço”: são dois significados completamente diversos. Miguel Reale, em sua definitiva obra “Filosofia do Direito”, em poucas palavras dizia que “valor é o que vale”. Uma das frases do filósofo do Direito é muito significativa para o entendimento do tema: “ou vemos as coisas enquanto elas são, ou as vemos enquanto valem; e, porque valem, devem ser (“Filosofia do Direito”, 7ª edição, 1975, página 170). Já o preço envolve uma coisa – um objeto material – que foi produzido e teve um custo na sua produção. Custa, portanto.
            A função do Direito Penal é proteger os valores que são mais importantes à vida em sociedade; a tutela que o Direito Penal proporciona é, por assim dizer, a mais drástica, porque esse ramo do Direito é o único que tem como sanção, como resposta estatal, a pena, visto por alguns antigamente “como o sofrimento imposto pelo Estado” àquele que cometeu um crime.
            Os filósofos recomendam que não se deve hierarquizar os valores, pois, se “valor é o vale”, não deve existir uma hierarquização entre eles. Mas, quando se redige a lei penal, uma escolha deve ser feita no momento da opção pela pena que protegerá o valor: caso alguém o deteriore  ou o ameace de deterioração, ficará sujeito àquela pena. Nessa ordem de ideias fica claro que aos olhos dos que fizeram o projeto de Código Penal que se tornou lei no ano de 1940, entrando em vigor a 1º de janeiro de 1942, o valor “vida” é o mais importante: ele não somente inaugura a Parte Especial do Código Penal (a que define os crimes e comina as penas), como se simbolicamente essa maior importância estivesse implícita, como o crime contra a vida, mais especificamente o homicídio, tem as penas mais graves e mais altas.
            Mais grave porque se optou pela reclusão e naquela época tinha uma forma de cumprimento muito severa; e mais alta porque ao homicídio simples a pena cominada era (ainda é) de 6 a 20 anos de reclusão; ao homicídio qualificado a pena é a mesma quanto à gravidade (reclusão), e muito mais alta: de 12 a 30 anos de reclusão. Em seu limite mínimo, a pena ao homicídio qualificado era a pena mais grave cominada a um delito: 12 anos. Depois, com as sucessivas mudanças que aconteceram, especialmente pela lei de crimes hediondos, ela deixou de ser a mais grave em matéria de quantidade: foi ultrapassada.
            Pois é: apesar disso, nunca se matou tanto no Brasil, e mais precisamente no estado de São Paulo. Apesar da ameaça da punição grave, o valor vida, o mais importante de todos os outros valores que o Direito Penal tutela, tem sido tirado por somenos... às vezes, por uma refeição.
            Sem entrar na análise dos vários homicídios qualificados que têm ocorrido, alguns com feição de latrocínio (a morte de um professor e a de uma grávida, por exemplo) – matar para roubar, em sua inicial classificação –, hoje se tem matado por muito pouco: pelo valor de uma refeição, ou quase. Na cidade praiana paulista, matou-se por 7 reais; em Brasília, por um resto de comida deixado no prato. Valor da refeição: R$7,99.
            Quando tais fatos acontecem, os “penalistas" que têm programa na televisão urram apontando que eles ocorrem por conta da excessiva brandura da lei penal (eles sequer sabem a pena cominada ao delito...), pedem reformas e atitudes semelhantes. Felizmente, não são ouvidos (pelo menos pelas pessoas que têm juízo: no projeto de Código Penal que tramita no Senado Federal a pena ao homicídio continuará idêntica). Será que a uma simples reforma da lei inibirá os criminosos? Para responder com profundidade à questão seria necessária uma exposição profunda acerca da finalidade da pena, o que não cabe nestas, como disse o poeta, “mal traçadas linhas”. E sem entrar nesse tema profundo, e já que a ideia que entremeia o tema é o valor, um ponto de partida interessante seria ensinar esses valores por intermédio da educação, ou seja, desde os bancos escolares a pessoa aprenderia que existem valores na sociedade que precisam ser respeitados (não direi que “devem ser respeitados” porque seria tautológico).
            Talvez ensinando às pessoas logo que iniciam o aprendizado o que é o valor e quais são os valores fosse um bom início. E não seriam necessárias leis duras. E agora cabe uma retificação no título: a vida vale; a refeição custa.




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