Um
dos mais vergonhosos acontecimentos da história dos Estados Unidos da América é
conhecido por “As bruxas de Salem”. Salem (ou Salém, como alguns grafam) é uma
cidade do estado de Massachusetts e ali algumas mulheres e homens foram
julgados e condenados à morte sob a acusação de praticar a bruxaria. Os últimos
julgamentos deram-se no ano de 1.692. Sobre o tema Arthur Miller escreveu uma
peça, bem como há um filme, baseado na peça, do ano de 1996, dirigido por
Nicholas Hyttner, estrelado por Daniel Day-Lewis e Winona Ryder. Um dos
condenados, Giles Corey, demorou três dias para morrer: a condenação à morte
impôs-lhe na verdade um suplício, consistente em comprimir o seu corpo com
pedras até morrer. Um dos juízes, Samuel Sewall, confessou mais tarde – tarde
demais – que pensava que as suas sentenças tinham sido equivocadas.
Para identificar-se uma bruxa, há um manual,
chamado em português “O martelo das bruxas” (às vezes traduzido por “O martelo
das feiticeiras”); em latim, é “Mallus maleficarum”.
Dias
atrás, uma mulher, cujo maior "crime" era ser bipolar, foi trucidada por um bando
de selvagens sob a acusação de ser bruxa e de sequestrar crianças para
imolá-las em rituais de magia negra. Dois componentes dessa tragédia chamaram a
atenção: o, por assim dizer, planejamento se deu pelas “redes sociais” – entenda-se: Facebook -, e, para reconhecê-la como bruxa,
foi utilizado um retrato falado oriundo da Sodoma brasileira, a ex-cidade
maravilhosa. Que o Facebook se presta à prática de porcarias, tudo mundo sabe, e que o retrato falado pode provocar confusões, idem. Mais um aspecto, este não do crime, mas da
forma como a mídia tem a ele se referido: os noticiaristas falam em “justiça
com as próprias mãos”.
“Justiça
com as próprias mãos” é um – mais um, aliás – nome inventado pela mídia para o
crime contra a administração da justiça chamado “exercício arbitrário das
próprias razões”, descrito no artigo 345 do Código Penal. A diferença entre a
selvageria que ocorreu na cidade praiana e o delito em questão é enorme: quando
pratica o delito previsto no artigo 345, o sujeito ativo tem o direito e, em vez
de procurar fazê-lo valer de forma civilizada, deduzindo uma pretensão em juízo,
com as “próprias mãos” quer resolvê-lo. Os exemplos existem aos montes e são cotidianos: o
proprietário do imóvel locado cujo inquilino não tem pago os alugueres (sim:
alugueres), manda trocar as fechaduras das portas para impedi-lo de entrar; o
empregado cujos salários estão atrasados subtrai um objeto do patrão no valor
do débito.
É
fácil notar que nos exemplos referidos o sujeito ativo do delito tem um direito
a ser exercido, mas, apressadamente, quer resolvê-lo por si mesmo, ao passo que
os “justiceiros” da orla marítima não tinham nenhum direito a ser reconhecido,
ainda que a pobre mulher fosse, como se supunha, sequestradora de crianças. O que se fez
ali foi “injustiça com as próprias mãos”; com muitas mãos, aliás.
Pois
é: os (in)justiceiros sequer leram o “Mallus maleficarum”para saber identificar uma bruxa, e, imagino, a esta
altura devem estar se sentindo pior que o juiz Samuel Sewall: ao passo que este
confessava pensar que as suas sentenças tivessem sido um equívoco, aqueles têm
a certeza de que cometeram uma tremenda injustiça. Mas o que os espera é mais
do que o remorso (se é que pessoas desse naipe conheçam esse sentimento): é uma acusação pela prática de um crime, o de homicídio qualificado, cuja pena vai de 12 a 30
anos de reclusão, e não o exercício arbitrário das próprias
razões, infração penal de menor potencial ofensivo.
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