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A advertência a Miranda





      Ernesto Miranda era um desses “descartados” da vida social: pobre, nascido no estado do Arizona no ano de 1941, desde cedo começou a meter-se em encrencas, que culminaram com a sua acusação de sequestro, estupro e roubo; isto se deu no ano de 1963. Interrogado pela polícia, confessou haver praticado os crimes, o que lhe valeu uma condenação, porém foi interposto recurso à Suprema Corte, que concordou em ouvir o seu caso (ao contrário do que ocorre no Brasil, não são todos os recursos automaticamente aceitos na mais alta corte de justiça dos EUA).
      O caso possuía uma característica importante: a sua confissão não fora precedida da advertência de que ele poderia permanecer em silêncio e que tudo o que dissesse poderia ser utilizado em seu desfavor quando do julgamento. Ou seja: os policiais que o interrogaram esqueceram (Freud explica?) de informa-lo de seus direitos, entre os quais o de permanecer em silêncio. Discutindo a violação desse direito, o caso chegou até a Suprema Corte e lhe deu razão, determinando que o interrogatório-confissão não poderia ser utilizado em seu processo e, claro, em seu desfavor.
      A discussão na Suprema Côrte tomou o nome de Miranda vs Arizona e tal ocorreu em meados da década de ’60 e o que se debatia ali era a aplicação do princípio “nemo tenetur se detegere” ou “privilege against self incrimination”, em vernáculo: “ninguém pode ser obrigado a fazer prova contra si mesmo”. Este princípio hoje está agasalhado na Constituição da República Federativa do Brasil, que, como se sabe, é do ano de 1988; depois dela, também a legislação infraconstitucional a acolheu: uma lei de 1° de dezembro de 2003, a de número 10.792, alterou o artigo 187 do Código de Processo Penal, determinando, ao dispor sobre o interrogatório do réu, que “depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder as perguntas que lhe foram formuladas”; o parágrafo único estabelece que “o silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa”. Isso quarenta anos após Miranda vs Arizona.
      Mas o “jeitinho” brasileiro existe até na aplicação da lei penal. Alguns agentes da autoridade, ao prenderem em flagrante delito um (suposto) sujeito ativo de um crime, no interior da viatura em que ele era conduzido ao plantão policial, perguntavam na base do “aqui entre nós” se ele era o autor do ilícito. Ele, acreditando no “aqui entre nós”, admitia ser o autor do fato. Quando era interrogado pela autoridade policial e devidamente informado de seu direito de permanecer calado, ele não respondia as perguntas que lhe eram feitas. Porém, os agentes da autoridade prestavam depoimento e diziam que o acusado havia “informalmente” admitido ser o autor do crime:> era o quanto bastava para que se aceitasse como prova da autoria aqueles depoimentos.
      A lei processual penal não contempla a figura da “confissão informal” – aliás, em matéria de Direito nada é informal, tudo deve ser formal, no sentido de que devem ser seguidas as formalidades para o ato jurídico sob pena de nulidade (não se pode esquecer o brocardo jurídico “forma dat esse rei” – “a forma é que dá existência [vida] à coisa”) e a admissão de culpa somente poderá ter validade se feita perante o juiz e se o acusado for advertido de que pode permanecer calado.
      Falta alguém levar à suprema corte brasileira, o Supremo Tribunal Federal essa questão: é válida a confissão “informal”? Se levada, espera-se que, tal qual ocorreu na maior democracia do mundo, a resposta seja negativa, banindo do território jurídico mais uma manifestação do “jeitinho brasileiro”. 
PS - Ernesto Mirando faleceu no ano de 1976, aos 35 anos de idade.




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