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A indústria das multas de trânsito




      O Código de Trânsito Brasileiro é uma lei relativamente recente e, mesmo assim, tem sofrido incontáveis modificações. Ele foi instituído pela lei n°9.503, de 23 de setembro de 1997, com um período de “vacatio legis” de 120 dias. Tal período de vacância foi necessário para que todas as modificações por ele trazidas fossem por todos assimiladas. É um código extenso e se todas as suas disposições fossem obedecidas, o trânsito brasileiro seria um dos melhores do mundo – porém, não é.
      Muitos dos seus comandos são simplesmente ignorados pela maioria dos motoristas (“condutores”), como se não existissem. Assim se dá por exemplo com a faixa de travessia de pedestres: diz a lei que em locais não sinalizados, se houver pedestre que queira atravessar a via o motorista deve deter o veículo que dirige, o que vale dizer, o pedestre tem total preferência sobre o automotor. No cotidiano o que se constata é o oposto: o pedestre fica aguardando na calçada que cesse o fluxo de veículos para empreender a travessia. Em cidades de primeiro mundo – nos Estados Unidos da América, por exemplo – os motoristas respeitam essa regra. Há cidades no Brasil em que esse respeito existe: Gramado, na serra gaúcha, por exemplo.
      Arremessar objeto pela janela do automotor é outra disposição do Código de Trânsito ignorada pela maioria dos motoristas; tal norma existe não  por causa da limpeza das vias, mas sim porque pode atrapalhar os outros condutores.
      Antes da existência dessa lei específica, as mortes e lesões ocorridas no trânsito eram classificadas como crimes culposos e a eles era aplicado o Código Penal; o homicídio estava (ainda está) definido no artigo 121, § 3°, com pena de detenção, de 1 a 3 anos; as lesões corporais, no artigo 129, § 6°, com pena de detenção de 2 meses a 1 ano. No ano de 1995 foi aprovada a lei n° 9.099/95, que criou os juizados especiais criminais, fazendo com a lesão corporal culposa fosse considerada infração penal de menor potencial ofensivo, cabendo a transação penal; já quanto ao crime de homicídio, por ter a pena mínima não superior a 1 ano, o processo poderia ser suspenso (“sursis” processual).
      Entendia-se (leia-se: mídia) que as penas eram brandas e o Código de Trânsito trouxe as figuras (além de outras) penais do homicídio culposo (artigo 302), com a pena de 2 a 4 anos e a de lesões corporais culposas (artigo 303), com a pena de detenção de 6 meses a 2 anos. Como se vê, sensivelmente maiores do que as cominadas no Código Penal.
      Porém, havia – há, ainda – outros problemas, como o excesso de velocidade, que não é crime, a não ser que o condutor esteja participando de racha. O excesso de velocidade constitui-se em infração administrativa e para coibi-la o poder público lança mão de radares, o que, em tese é discutível: em vez de usar um funcionário público para fiscalizar e, se for caso, punir, o Estado utiliza um objeto destituído de vida.
      Cabe ao município, no âmbito de suas atribuições, fixar os limites de velocidade nas vias públicas e, como é óbvio, implantar meios de fiscalizar, e, quando necessário, punir os desobedientes. Todavia, como a finalidade de toda e qualquer lei não é exclusivamente punir (nem a lei penal a tanto aspira, pois ainda quando pune quer reeducar...), mas, primeiramente, educar os cidadãos, em algumas cidades, como é o caso de Campinas, as multas aplicadas por radares têm se tornado uma fonte de arrecadação. As aplicadas por radares somente, porque os agentes de mobilidade urbana (popularmente chamados de “amarelinhos”), se quisessem, aplicariam milhares de multas diariamente apenas pelo estacionamento proibido. Por exemplo: um radar instalado na rua Elyseu Teixeira de Camargo, claro, num declive, "aplicou" 3.000 (sim, três mil) multas no primeiro mês de funcionamento; apenas no primeiro dia foram "aplicadas" 190. Cada uma custando ao motorista 85 reais, são 245 mil reais somente num mês; se for paga com desconto, o que a reduz para 68 reais, serão 204 mil reais.
      Além disso, há uma gama de velocidades dentro do município, gerando perplexidade: em algumas vias, a velocidade máxima é de 70 km/h; em outras, 60 km/h; em outras, 50 km/h; me, finalmente, em algumas é de 40 km/h. Trafega-se por uma via e de repente surge uma placa alertando que a velocidade máxima é de 50 km/h e fiscalizada por radar; metros adiante, o limite é diminuído para 40 km/h. Deve ficar ressaltado que o prefeito Toninho, em sua curta gestão (9 meses), teve a coragem de aumentar a velocidade de algumas vias para 70 km/h: havia anos que a velocidade máxima em toda a cidade era de 60 km/h.
           Outro fato que confirma o aparecimento de uma indústria em torno das multas é a existência de "empresas" especializadas em "limpar" o nome do motorista que está com a pontuação alta na CNH. No ano de 2005 eu estava nos EUA em viagem e, ao retornar, recebi uma  chamada de uma dessas "empresas" oferecendo os seus "serviços". Respondi que não precisava; todavia, ao ver a correspondência, havia uma carta do DETRAN notificando-me que fora instaurado um processo de cassação da minha habilitação por haver ultrapassado a pontuação permitida: é que os carros dos meus filhos estavam em meu nome e as multas que foram aplicadas não foram feitas as indicações de condutor. A "empresa" soube antes de mim da instauração do processo...
      É óbvio que ninguém em sã consciência defenderia a ideia do caos no trânsito (que, por si mesmo, em Campinas, já está caótico), nem de falta de controle da velocidade (mesmo porque em geral o motorista brasileiro não tem educação) mas uma campanha de conscientização antes do funcionamento de um novo radar é uma medida que está no âmbito do Código de Trânsito.


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