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A caixa basculante




          Não é conversa de saudosista, mas a criminalidade romântica está em extinção. Infelizmente. E isto é afirmado não apenas como sintoma de saudade, mas sim porque a criminalidade atual, além dos níveis estratosféricos, está violenta. O maior penalista do Brasil de todos os tempos, Nélson Hungria, já proclamava algo semelhante a isso nos anos cinquenta ao comentar o crime de estelionato. A esperteza, a habilidade e a lábia estão cedendo lugar para a truculência. Crimes patrimoniais violentos estão quase ocupando os lugares mais elevados nas estatísticas criminais.
          O batedor de carteira – furto com destreza –, o estelionatário – que utiliza apenas o seu poder de convencimento para aplicar, por exemplo, o golpe do bilhete premiado –, o ladrão que enganava a vítima dizendo-se empregado de uma concessionária de serviço público (usando até uniforme e crachá) para entrar no domicílio da vítima, as falsas domésticas. Estas espécies de criminosos estão escasseando.
          Havia um furto mediante fraude (qualificado, pois), que era praticado especialmente em lojas na época de grandes datas festivas (dia as mães, dos pais, Natal) cuja engenhosidade era notável: o larápio[1] confeccionava uma caixa que tinha um dos lados – o de baixo - basculante, de forma que ele apanhava a mercadoria que pretendia subtrair e a empurrava contra a parte basculante que cedia e o objeto era introduzido na caixa, com a parte basculante voltando à posição original. A caixa era revestida com papel de presente: a busca da perfeição para enganar era quase neurótica.
          Defendi uma pessoa acusada dessa modalidade de furto, na forma de tentativa, que fora detida e presa em flagrante ao retirar-se da loja, bem próxima do fórum, em que havia praticado a subtração. Havia um detalhe interessante: ele somente fora apanhado porque um dos seguranças da loja desconfiou dele exatamente por causa da caixa (o truque era conhecido) e passou a segui-lo, conseguindo assim vê-lo em pleno ato de subtração.
          Como o objeto do furto era uma calça e o valor era pequeno, o juiz logo concedeu-lhe liberdade provisória. Foram ouvidas as testemunhas de acusação (não arrolei de defesa: o acusado não as indicou e, ademais, seriam apenas de antecedentes). Nas alegações finais, a minha tese de defesa tinha duas vertentes: crime impossível e princípio da insignificância. O magistrado não aceitou nenhuma das duas: condenou-o por furto qualificado, concedendo-lhe, porém, a suspensão condicional da execução da pena (“sursis”).
          Crime impossível porque a vigilância exercida pelo segurança impediu que o crime se consumasse, não existindo sequer o perigo da tentativa. E insignificância, óbvio, pelo valor da calça.



[1] . No livro “A casa da mãe Joana” (Editora Campus, Rio, 7ª edição, 2002, página 130), Reinaldo Pimenta, ao comentar o verbete “larápio”, assim discorre: “na Roma antiga, um pretor (juiz) chamado Lucius Amarus Rufus Appius proferia suas sentenças sempre a favor de quem lhe pagasse mais. Como era costume na época os primeiros nomes aparecerem só com as iniciais, o corrupto pretor assinava suas decisões assim: L. A. R. Appius. Daí a palavra larápio em português. Interessante, não? É, mas não passa de mais um caso de etimologia fascinante e falsa, por pela menos três motivos: (a) a história não registra a existência desse pretor; (b) no latim, não há a palavra larappius e (c) larápio só existe no português, não consta no vocabulário de nenhuma outra língua neolatina”

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