Pular para o conteúdo principal

A doutrina Parot e o total da pena

No Brasil, sabe-se que, conforme dispõe o artigo 75 do Código Penal, ninguém poderá permanecer preso por mais de 30 anos e em caso de concurso de crimes devem as penas ser unificadas para que seja atendido o preceito. Uma pessoa pode ser condenada a mais de 30 anos, a 90 anos, por exemplo, mas cumprirá esse limite legal. O problema surge quando se trata de requerer algum "benefício legal", tal como a progressão de regime, em que, se não se tratar de crime hediondo, a pessoa deve cumprir 1/6 da pena imposta: no cálculo para a progressão o percentual deve recair sobre a pena total ou sobre a unificada?
Henri Parot, condenado por vários crimes como integrante do ETA, questionou perante a Suprema Corte de seu país se os cálculos para a obtenção de "benefícios" deveriam recair sobre cada pena em si ou sobre o total unificado (tal como aqui, lá também o limite máximo de encarceramento é de 30 anos): respondeu o tribunal que o cálculo deveria recair sobre cada pena e não sobre o total. Recorreu ao Tribunal Constitucional, mas, numa apertada votação (6 votos a 5), foi mantido o entendimento. Convém destacar algumas frases do voto vencido da magistrada Adela Asúa: "o acesso ao conhecimento seguro da duração da pena e sua previsibilidade são elementos que pertencem ao núcleo fundamental da lei prévia, certa e precisa, tanto com respeito aos delitos como às consequências positivas correspondentes". Outra frase: "se trata de estabelecer uma pena de cumprimento verossímil e compatível com a proibição de penalidades contrárias à dignidade humana".  Outra pessoa condenada como terrorista a mais de 3.000 anos de cárcere, Inés Del Río, recorreu ao Tribunal de Direitos Humanos da União Europeia (em inglês European Court of Human Rights) e este decidiu que a decisão espanhola viola os artigos 5.1 e 7 da Convenção Europeia de Direitos Humanos, instando o tribunal espanhol a rever a sua decisão. O governo espanhol já adiantou que interporá recurso dessa decisão perante a Grande Sala do Tribunal Europeu.
No Brasil, quando a parte geral do Código Penal impôs o limite de cumprimento máximo de pena privativa de liberdade, surgiu essa mesma discussão: deve o cálculo recair sobre o total da pena ou da pena unificada? Nos poucos casos levados ao Supremo Tribunal Federal, sempre sob a forma de "habeas corpus", a maior corte brasileira tem entendido que o cálculo deve recair sobre a pena total, o que equivale dizer que, dependendo da quantidade de pena, a possibilidade de obter qualquer benefício torna-se inaplicável.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Câmeras corporais

A adoção da utilização de câmeras corporais por policiais militares gerou – e gera – alguma controvérsia no estado de São Paulo, tendo sido feita uma sugestão que mais lembra um pronunciamento de Eremildo, o Idiota (personagem criado por Elio Gaspari): “os soldados da força policial usariam as câmeras, mas as ligariam apenas quanto quisessem”. Essa tola sugestão tem como raiz o seguinte: nas operações em que pode haver alguma complicação para o policial ele não aciona a câmera; mas demais, sim. Apenas a título informativo, muitos países do mundo tem adotado essa prática: em algumas cidades, como, por exemplo, nos Estados Unidos, até os policiais que não trajam fardas estão utilizando esses aparatos. Mas, a meu ver, o debate tem sido desfocado, ou seja, não se tem em vista a real finalidade da câmera, que é a segurança na aplicação da lei penal, servindo também para proteger o próprio agente da segurança pública (tendo exercido, enquanto Procurador do Estado, a atividade de Defensor...

A memória

A BBC publicou tempos atrás um interessante artigo cujo título é o seguinte: “O que aconteceria se pudéssemos lembrar de tudo” e “lembrar de tudo” diz com a memória. Este tema – a memória- desde sempre foi – e continua sendo – objeto de incontáveis abordagens e continua sendo fascinante. O artigo, como não poderia deixar de ser, cita um conto daquele que foi o maior contista de todos os tempos, o argentino Jorge Luis Borges, denominado “Funes, o memorioso”, escrito em 1942. Esse escritor, sempre lembrado como um dos injustiçados pela academia sueca por não tê-lo agraciado com um Prêmio Nobel e Literatura, era, ele mesmo, dotado de uma memória prodigiosa, tendo aprendido línguas estrangeiras ainda na infância. Voltando memorioso Funes, cujo primeiro nome era Irineo, ele sofreu uma queda de um cavalo e ficou tetraplégico, mas a perda dos movimentos dos membros fez com que a sua memória se abrisse e ele passasse a se lembrar de tudo quanto tivesse visto, ou mesmo (suponho) imaginado...

Legítima defesa de terceiro

Um dos temas pouco abordados pelos doutrinadores brasileiros é o da legítima defesa de terceiro; os penalistas dedicam a ele uma poucas páginas, quando muito. Essa causa de exclusão da ilicitude vem definida no artigo 25 do Código Penal: “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Nessa definição estão contidos os elementos da causa de exclusão em questão: uso moderado dos meios necessários; existência de agressão atual ou iminente; a direito seu ou de outrem. Como se observa facilmente, a defesa é um repulsa a uma agressão, ou seja, é uma reação a uma agressão, atual (que está acontecendo) ou iminente (que está para acontecer). Trata-se, a causa de exclusão em questão, de uma faculdade que o Estado põe à disposição da pessoa de defender-se pois em caso contrário a atuação estatal na proteção dos cidadãos tornar-se-ia inútil. Não é uma obrigação, é uma faculdade. Caso, na...