Pular para o conteúdo principal

Crime de palavra e a internet




      Uma das críticas mais constantes contra o Código Penal é a que afirma que ele está ultrapassado. Quem a faz geralmente não sabe do que está falando. Sim, porque o código, como todos os códigos, compõe-se de duas partes, a geral e a especial. Esta é do ano de 1940; aquela, do ano de 1984. Deduzindo que a pessoa que o critica esteja se referindo à parte especial, a que define os crimes e comina as penas, esta sim tem mais de 70 anos. Mas, ainda que seja anosa, em muitos pontos continua atual. Em outros, devido à evolução da sociedade, deve sofrer modificações.
      A doutrina faz uma classificação das infrações penais com base no número de atos necessários à produção do resultado, ao número de pessoas necessário para o cometimento do delito e muitas outras classificações e uma delas diz respeito à forma de cometimento do delito: crime de forma livre e crime de forma vinculada.
      Os crimes de forma livre, a própria nomenclatura já indica, são aqueles que podem ser cometidos por qualquer forma, qualquer modo que a imaginação humana conceba. Exemplo clássico é o homicídio: o sujeito ativo pode tirar a vida da vítima da forma que ele quiser desde que, óbvio, seja uma forma idônea. Veneno, fogo, faca, arma de fogo, enforcamento, susto e – pasmem – risos. O exemplo, citado por Nélson Hungria, está num conto de Monteiro Lobato, “O engraçado arrependido”. Vale a pena lê-lo, embora se discutível o exemplo, já que pode estar em destaque uma concausa antecedente, que deve ser coberta pelo dolo do agente. Ao contrário, o crime de forma vinculada somente pode ser cometido pela forma prevista no tipo penal, que, assim, vincula o seu cometimento e um bom exemplo é o crime de perigo de contágio de moléstia venérea, artigo 130 do Código Penal: o delito somente pode ser praticado “por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso”.
      Outro bom exemplo de crime de forma (de realização) livre é o crime contra a honra e este valor pode ser violado nos crimes de calúnia, difamação e injúria. O valor honra pode ser atingido por qualquer meio: escrito, verbal, mímico, enfim, tudo aquilo que a imaginação humana conseguir criar. Na forma verbal, a mais comum, uma pessoa descreve um fato delituoso e atribui a sua prática a outra pessoa, mentirosamente. Ou verbalmente atribui-lhe uma qualidade negativa. Ou envia uma carta ofendendo-a.
      Embora os crimes contra a honra tenham uma definição do ano de 1940 e a internet comercialmente começou a operar em 1988, a honra continua merecendo a proteção penal e a forma de atingi-la é livre, o que equivale a dizer que pode ser utilizada a rede mundial de computadores para ofender alguém. Depois do advento da internet, vieram os seus “filhotes”, como o e-mail, e outros, chamados de “redes sociais”, tais como o Orkut e o Facebook, não podendo ser excluído o “blog”. Ficou mais fácil cometer um crime contra a honra e, embora esses meios eletrônicos tenham vindo muito depois do Código Penal, Parte Especial, constituem-se numa forma idônea para as agressões à honra. Porém, deixam farta prova de autoria, o que permite a punição dos ofensores. O jornalista Paulo Henrique Amorim, por exemplo, foi condenado em algumas ações penais pela prática de crimes contra a honra – um deles, contra um jornalista da TV Globo, Eraldo Pereira, a quem Amorim fez referências criminosas com conotação de preconceito racial.
      Os crimes contra a honra formam apenas uma faceta dos crimes de palavra e está tomando corpo outro crime de palavra que pode ser cometido mediante o uso da internet e ele é o falso testemunho, em que o depoimento é tomado por videoconferência. Mas este tema merece outra abordagem, bem como outros crimes que podem ser cometidos via internet, como, por exemplo, a “pedofilia”.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Câmeras corporais

A adoção da utilização de câmeras corporais por policiais militares gerou – e gera – alguma controvérsia no estado de São Paulo, tendo sido feita uma sugestão que mais lembra um pronunciamento de Eremildo, o Idiota (personagem criado por Elio Gaspari): “os soldados da força policial usariam as câmeras, mas as ligariam apenas quanto quisessem”. Essa tola sugestão tem como raiz o seguinte: nas operações em que pode haver alguma complicação para o policial ele não aciona a câmera; mas demais, sim. Apenas a título informativo, muitos países do mundo tem adotado essa prática: em algumas cidades, como, por exemplo, nos Estados Unidos, até os policiais que não trajam fardas estão utilizando esses aparatos. Mas, a meu ver, o debate tem sido desfocado, ou seja, não se tem em vista a real finalidade da câmera, que é a segurança na aplicação da lei penal, servindo também para proteger o próprio agente da segurança pública (tendo exercido, enquanto Procurador do Estado, a atividade de Defensor...

A memória

A BBC publicou tempos atrás um interessante artigo cujo título é o seguinte: “O que aconteceria se pudéssemos lembrar de tudo” e “lembrar de tudo” diz com a memória. Este tema – a memória- desde sempre foi – e continua sendo – objeto de incontáveis abordagens e continua sendo fascinante. O artigo, como não poderia deixar de ser, cita um conto daquele que foi o maior contista de todos os tempos, o argentino Jorge Luis Borges, denominado “Funes, o memorioso”, escrito em 1942. Esse escritor, sempre lembrado como um dos injustiçados pela academia sueca por não tê-lo agraciado com um Prêmio Nobel e Literatura, era, ele mesmo, dotado de uma memória prodigiosa, tendo aprendido línguas estrangeiras ainda na infância. Voltando memorioso Funes, cujo primeiro nome era Irineo, ele sofreu uma queda de um cavalo e ficou tetraplégico, mas a perda dos movimentos dos membros fez com que a sua memória se abrisse e ele passasse a se lembrar de tudo quanto tivesse visto, ou mesmo (suponho) imaginado...

Legítima defesa de terceiro

Um dos temas pouco abordados pelos doutrinadores brasileiros é o da legítima defesa de terceiro; os penalistas dedicam a ele uma poucas páginas, quando muito. Essa causa de exclusão da ilicitude vem definida no artigo 25 do Código Penal: “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Nessa definição estão contidos os elementos da causa de exclusão em questão: uso moderado dos meios necessários; existência de agressão atual ou iminente; a direito seu ou de outrem. Como se observa facilmente, a defesa é um repulsa a uma agressão, ou seja, é uma reação a uma agressão, atual (que está acontecendo) ou iminente (que está para acontecer). Trata-se, a causa de exclusão em questão, de uma faculdade que o Estado põe à disposição da pessoa de defender-se pois em caso contrário a atuação estatal na proteção dos cidadãos tornar-se-ia inútil. Não é uma obrigação, é uma faculdade. Caso, na...