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A ofensa do ex-estagiário




          Ele foi estagiário na PAJ e por um bom tempo. Era aplicado, assíduo e respeitoso no trato com todos. Formou-se, submeteu-se ao exame da OAB, logrou aprovação, requereu o desligamento da PAJ e montou um escritório, praticando a advocacia na área cível.
          Certa ocasião procurou-me dizendo que precisava conversar em particular. Combinamos um encontro. Revelou-me o motivo: estava sendo processado sob a acusação de crime contra a honra. De um Juiz de Direito cível da comarca. Pedi-lhe que me relatasse tudo. Porém, por mais que o envolvido exponha os fatos, sempre ficará faltando algo. É de se aplicar o brocardo jurídico formulado em latim: “quod non est in actus non est de hoc mundo”. Em vernáculo: “o que não está nos autos, não está no mundo”. O mundo dos envolvidos no processo – seja juiz, seja promotor, seja defensor – é o próprio processo: o seu conteúdo é que servirá para decidir a causa. Ademais, há aquele ditado popular que diz que “quem conta um conto lhe acrescenta um ponto”.
          Por mais que ele tenha descrito o fato, era necessário que eu examinasse os autos do processo criminal. Foi o que fiz. Dirigi-me ao cartório da 1ª Vara Criminal e solicitei o processo para exame. Surpreendeu-me o que li. Aquele estagiário pacato e respeitoso, numa ação cível que versava sobre um imóvel, mais especificamente um apartamento, ele, o ex-estagiário atuando pelo comprador contra a construtora, não teve reconhecido o direito de seu cliente, que saiu derrotado na demanda, interpôs o recurso cabível e ao elaborar as razões recursais, investiu pesadamente contra a honra do magistrado. Disse, entre outras ofensas, que ele estava “a serviço da construtora”. Esta era uma das mais suaves.
          O magistrado, mais do que óbvio, sentiu-se atingido na sua honra subjetiva[1], sentiu-se injuriado[2], e fez uma representação ao Ministério Público[3], que, lendo aquelas ofensas, denunciou o ex-estagiário por crimes contra a honra: difamação e injúria.
          Aceitei atuar em sua defesa, sabendo que o faria quase como um “pro bono”[4], pois não cobraria honorários. O processo transcorreu em todos os seus termos (interrogatório, defesa prévia, oitiva da vítima e das testemunhas de acusação, das testemunhas de defesa). Porém, dado o insuperável excesso de trabalho, o processo teve uma demora excessiva e isso foi crucial ao deslinde da questão favoravelmente ao ex-estagiário: o Estado perdeu o poder-dever punitivo em razão do decurso do tempo, ou seja, ocorreu a prescrição. Se ela não tivesse ocorrido, ele seria fatalmente condenado, pois as ofensas foram feitas por escrito e em um processo, o que é mais do que suficiente para uma condenação, exceto se forem analisados outros pontos: intenção de ofender, imunidade judiciária[5] e outros.
          Passado algum tempo, fui por ele procurado: ele havia sido contatado por um conhecido que estava sendo processado por homicídio simples tentado e o julgamento fora desaforado para a comarca de Itatiba. O criminalista que o defendia havia falecido de infarto e ele precisava contratar outro com urgência, porém não conhecia nenhum. Socorreu-se do ex-estagiário, pedindo uma indicação. Este me procurou para indagar se poderia indicar o meu nome. Li o processo. Seria uma defesa muito fácil. Mais do que depressa aceitei. Fiz a defesa em plenário. O réu foi condenado, porém também ocorreu a prescrição, aqui na modalidade retroativa (mais detalhes estão sob o título “O mau atirador”).
          Os honorários que eu não cobrei para defender o ex-estagiário vieram em forma quintuplicada pela defesa em plenário que ele me indicou. 

(Capítulo do livro "Casos de júri e outros casos", Editora Millennium.)

[1] . Parte da doutrina atual não aceita mais a distinção entre “honra objetiva” – atingida pela calúnia e pela difamação – e “honra subjetiva” – atingida pela injúria. Mas a doutrina tradicional ainda aceita e expõe a divisão.
[2] . Não é essencial ao reconhecimento do delito que a pessoa sinta-se ofendida, pois os crimes contra a honra em regra são formais – ou, conforme dizia Nélson Hungria, “de consumação antecipada”.
[3] . Como se trata de crime de ação penal pública condicionada – e condicionada à representação – é necessário que a vítima apresente esse pedido ao Ministério Público ou ao Delegado de Polícia para que o ofensor seja processado – e talvez punido.
[4] . É parte de uma expressão latina: “pro bono publico” – em vernáculo, “para o bem público”. Serve para qualquer profissão, mas aplica-se mais ao profissional do Direito, e se refere a casos em que ele deve trabalhar sem remuneração. Nos Estados Unidos, em algumas unidades da federação o profissional é obrigado a trabalhar em alguns casos como “pro bono”..
108. As partes no processo têm imunidade quanto aos crimes contra a honra. Conforme dispõe o artigo 142 do Código Penal, “não constituem difamação e injúria puníveis: I – a ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou seu procurador”. Ocorre que o juiz não é parte no processo: ele o preside.

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