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Uma noite (de terror) em Paris - III



      O grupo terrorista VAR-Palmares detonou um carro-bomba no Quartel General do II Exército, no Ibirapuera, matando um dos soldados que estavam de sentinela, Mário Kozel Filho; por conta disso, foram os soldados da 1ª Companhia do 1° Batalhão de Carros de Combate Leves, localizado em Campinas, convocados para ir a São Paulo, pois as autoridades militares acreditavam que outros ataques seriam perpetrados.
      Colegas de farda foram me buscar em casa de madrugada para me levar ao quartel a fim de receber as ordens. Na noite da véspera, eu tinha ido com alguns amigos a uma festa junina e no caminho presenciamos um acidente de trânsito: na rua atrás do Liceu Nossa Senhora Auxiliadora, uma Kombi invadiu a contramão e abalroou uma lambreta, atingindo a perna do carona. Foram os dois ao chão e a perna do carona dobrou-se para trás como em um desenho animado. Ele urrava de dor. Tocamos a campainha de uma casa ali próxima e pedimos ao dono que chamasse a polícia e o socorro (este se chamava SAMDU) e continuamos nosso caminho em direção à casa em que seria a festa, próxima dali. Estávamos todos a pé.
      Quando meu pai me acordou na madrugada, dizendo “que um pessoal do exército” estava me procurando, inocentemente pensei que o motivo era para que eu prestasse depoimento sobre o acidente que presenciara: mal sabia, como soube anos depois ao me tornar advogado, que a demora é de meses, quiçá anos, para que uma pessoa testemunha seja chamada a depor. Ademais, não me ocorreu em que era na hora em que era acordado, eu não tinha dado o meu nome a ninguém como testemunha.
      Chegando ao quartel, fardados, fomos postos em forma – o dia estava alvorecendo – e nos foi explicado pelo comandante o que ocorrera – o atentado – e que nos dirigiríamos a São Paulo, pois se acreditava que outros aconteceriam. Os carros de combate seriam transportados pelo auto trem, uma invenção da época para transportar caminhões. Embarcados os carros, fomos para São Paulo, chegando no fim da tarde, parando na estação da Lapa, e ficamos aguardando ordem para desembarcar. A ordem não veio naquele dia e pernoitamos nos carros ou num dos vagões de passageiros que compunham o comboio.
      A ordem de desembarque não veio porque não houve mais ataque e enquanto esperávamos não pudemos tomar banho, nem trocar de roupa (cada qual levou quando muito uma “muda” de roupa), dormindo sentados no carro de combate ou num dos vagões. Neste ponto, parecia que estávamos numa guerra. Depois de três dias fomos autorizados a retornar a Campinas, mas na estação ferroviária – ainda era Companhia Paulista de Estrada de Ferro – também não pudemos desembarcar, pois o estado de prontidão perdurava. Mais uma noite mal dormida. Ocorreu um quase incidente: vimos uma pessoa passando furtivamente sobre os trilhos e, cada qual de nós (éramos três) armados com uma metralhadora Ina .45, que era a arma regulamentar dos componentes da guarnição do carro de combate, saímos em sua perseguição. Logrando alcança-lo, vimos que se tratava apenas de uma pessoa que “cortava caminho” pelos trilhos da ferrovia. Nada de terrorismo.
      Foi uma experiência intensa, embora na época eu tivesse 19 anos, idade em que parece não existir perigo: todas aquelas horas de tensão foram encaradas dentro da mais total normalidade. Mas hoje me preocupa o seguinte: e se eu tivesse matado alguém, ainda que culposamente? Ou seja: a minha arma disparando sem querer e atingindo alguém, matando-o? Ou dolosamente? Conseguiria conviver com isso?
      Talvez intensamente por este motivo é que em Paris, já bem longe dos 19 anos de idade, é que os covardes ataques, embora tenham ceifado 130 vidas, não provocaram temor em mim.
      A propósito: espero em breve retornar à “cidade-luz”.

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