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Abortos



      
      O aborto é daqueles delitos que mais ocupam o “campo escuro” ou “cifra negra” da criminalidade, pois é uma infração penal em que “vítima”[1] não tem nenhum interesse na punição do sujeito ativo.  Exceto na hipótese do aborto sem o consentimento da gestante, de ocorrência rara, nas outras duas modalidades – auto-aborto e aborto com o consentimento da gestante – a descoberta do delito somente ocorre quando há alguma complicação, como, por exemplo, uma hemorragia.
            E depois do advento da lei nº 9.099/95, que instituiu o JECrim – Juizado Especial Criminal -, passou a ser possível a suspensão processual em alguns casos de aborto, o que significa dizer que raramente a pessoa acusada é submetida a julgamento (vale lembrar que o aborto é um dos quatro crimes [dolosos] contra a vida que são julgados pelo Tribunal do Júri): se transcorrer o prazo de suspensão, que é geralmente fixado no mínimo (2 anos) sem nenhum incidente, é extinta a punibilidade e o processo é arquivado.
            Num dos poucos casos de aborto em que trabalhei houve a suspensão: a ré, uma comerciária de pouco mais de 18 anos, fora a uma farmácia e comprara um remédio para o estômago que provocava o aborto. Sim, ela sabia que estava grávida e adquiriu o remédio exatamente com a finalidade de abortar, já que não tinha nenhum problema estomacal. Houve uma complicação e ela foi ao pronto-socorro: atendida, descoberta a manobra abortiva, a polícia foi comunicada.  Houve inquérito, o Ministério Público denunciou-a e, ao receber a denúncia, o magistrado designou audiência para interroga-la e fazer a proposta de suspensão, que deve ser aceita pela pessoa que deve estar acompanhada de advogado. Conversei com a ré antes da audiência e expus tudo isso a ela e ela disse que iria aceitar a proposta de suspensão. Aceitou e o juiz determinou ao escrevente que imprimisse o termo. Este termo já fica “pronto” no computador, faltando apenas preencher o nome da pessoa acusada. Naquele termo constava como uma das condições da suspensão “não frequentar prostíbulo durante o prazo de suspensão”, condição que geralmente se aplica a processo movido contra homem. Antes que ela assinasse, li o termo e fiquei estarrecido: expliquei ao juiz que como seria possível uma comerciária ter motivo para frequentar um prostíbulo; ademais, que era algo até ofensivo à ré. Imediatamente, o magistrado mandou corrigir o equívoco e novo termo, sem essa condição estapafúrdia, foi impresso.
            Outro caso em que trabalhei eram duas pessoas acusadas: um casal de namorados, ambos mal entrados na maioridade penal. Ela engravidara e ele comprou o mesmo remédio com efeito colateral abortivo. Ela ingeriu-o e foi, sem ele, porém com umas amigas, passar o domingo numa represa numa cidade próxima a Campinas e ali teve complicação pós-aborto (este tipo de delito somente é descoberto por conta das complicações, pois a “vítima” não tem interesse na punição do sujeito ativo). Foi ao pronto-socorro, onde foi atendida e, constatado o aborto, foi acionada a policia. Como as manobras abortivas se deram em Campinas, para cá foi enviado o inquérito policial. Ambos foram denunciados e foi feita a proposta de suspensão, imediatamente aceita. Porém, o réu envolveu-se em outros crimes, de extorsão mediante sequestro, e a suspensão foi revogada, tendo o processo tomado o seu curso normal, culminando com o seu julgamento em plenário. Não consegui convencer os jurados, nem por escassa maioria, de que deveriam absolver o réu: eles o condenaram. O juiz impôs-lhe a pena mínima e como ele era menor de 21 anos na época do fato, teve o prazo prescricional reduzido de metade, tendo, assim, extinta a punibilidade pela prescrição.
 Presentemente, há uma ação  de descumprimento de preceito fundamental - ADPF -,  de número 442, proposta pelo PSOL, discutindo a criminalização do aborto até a 12a semana. A relatora, Ministra Rosa Weber, abriu audiências públicas para, digamos, orientar-se sobre o tema. Aguardemos o julgamento da ação.


[1]. Vítima entre parênteses porque, embora a ação seja exercida contra a gestante, o sujeito passivo é o feto. Uma parte da doutrina mais moderna inclina-se pela colocação do Estado como vítima da ação delituosa.

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