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O roubo frustrado


 
            Mas crime sexual consumado.
            Os fatos ocorreram no bairro Jardim Nova Europa, numa área de lazer chamada Parque dos Guarantãs. Uma moça, quase no final da tarde, praticava o “jogging”, quando foi abordada por um rapaz com pouco mais de 18 anos e armado, que anunciou o “assalto”. Ela, obviamente, não trazia nada de valor (é de palmar entendimento: ninguém pratica esporte com jóias ou dinheiro).
            Para não perder a viagem, ou talvez já estivesse disposto a isso, ele, sob ameaça exercida com o emprego da arma que portava, levou-a a um local mais afastado e cometeu o crime de atentado violento ao pudor: fez com que ela praticasse sobre ele sexo oral. O fato foi comunicado à autoridade policial, houve investigação e foi descoberta a autoria. Denunciado por roubo “qualificado”[1] pela ameaça com emprego de arma tentado[2] e pelo atentado violento ao pudor[3] consumado, iniciou-se o processo na 1ª Vara Criminal. Foi decretada a prisão preventiva.
            Atuei apenas na instrução, pois fui transferido de Vara Criminal, e lembro de um detalhe na descrição que a vítima fez dos fatos: ela desconfiou que a arma fosse de brinquedo, pela “temperatura do cano” quando colocado em sua têmpora. E era mesmo de brinquedo, pois foi apreendida e periciada. Retornando tempos depois a trabalhar naquela vara, fui perguntar sobre o resultado: ele havia condenado a 2 anos e 8 meses de reclusão pelo roubo e 6 anos de reclusão pelo atentado violento ao pudor. Pretendi fazer um recurso, especialmente para discutir a condenação pelo roubo qualificado tentado, que a meu ver não poderia ter ocorrido, por ser crime impossível, porém fui informado de que ele havia fugido da cadeia em que estava (2° Distrito Policial). Frustou-me a informação.
            Algum tempo depois, procurou-me na AJ uma senhora dizendo-se mãe dele; exultei de alegria, pois, enfim, poderia interpor revisão[4]. Apenas perguntei em que cadeia ele estava e ela respondeu: “na cadeia do 5° DP, no Jardim Amazonas”. No mesmo dia, fui ao fórum e retirei o processo para preparar a revisão; minha única finalidade era discutir se é ou não crime impossível tentar roubar uma pessoa que não traz nenhum valor consigo.
            Elaborada a peça, fui à cadeia para colher a assinatura (como eu não tinha procuração – e nem queria – a solução era que ele assinasse o pedido comigo). Conversamos de pé, ele no lado interno e eu (evidentemente) no externo, com a grade entre nós (cadeia pública não tem parlatório para que o preso se entreviste com o advogado). Indaguei sobre as circunstâncias de sua prisão depois da fuga e ele relatou-me uma história de estarrecer, sob todos os aspectos.
            Algum tempo depois da fuga ele conheceu um advogado; cansado da vida de sobressalto, conversaram e ele acabou contratando os serviços daquele profissional. Algumas semanas após, conversou com o advogado e este lhe disse que estava tudo resolvido; os honorários foram modicamente cobrados, em prestações.
            Uma noite, ele estava em um bar quando ali entraram dois policiais militares para tomar um refrigerante; iniciou-se uma conversa e ele segredou aos milicianos que já tivera problemas criminais mas que estavam resolvidos. Não crendo naquilo que ouviam, resolveram verificar e constataram que ele era procurado. Foi levado ao plantão policial e depois encaminhado à cadeia.
            Não acreditei no que meus ouvidos registravam e lhe disse a verdade: que ele fora condenado pelos dois crimes e qual a quantidade de pena; ao dizer “atentado violento ao pudor”, ele, embora fosse afro-descendente, embranqueceu de susto, pois uma regra no sistema carcerário é não dar paz aos condenados por crimes sexuais[5]. Indignado e disposto a pedir providências à OAB, perguntei a ele o nome do advogado e ele respondeu “Dr. José”. “De que”, indaguei. Resposta: “não sei”. “E o endereço”, perguntei. “Não sei”, respondeu: “eu o encontrava no bar”.
            Ajuizei a revisão, que foi indeferida.
            Inconformado, impetrei uma ordem de “habeas corpus” no Supremo Tribunal Federal, sempre com o mesmo pedido: reconhecimento do crime impossível (com a conseqüente absolvição) quanto ao roubo. O pedido foi negado.
            Ele foi duplamente punido: pela justiça e por um espertalhão.

(Capítulo do livro "Casos de júri e outros casos", Editora Millennium.)
)

[1] . O nome mais correto é roubo com causa de aumento de pena; de qualquer forma, artigo 157, parágrafo 2°, inciso II, do Código Penal, com pena mínima de 5 anos e 4 meses de reclusão, mais multa.
[2] . A tentativa está definida no artigo 14, inciso II, do Código Penal e o crime é tentado quando, “iniciada a execução, o resultado não sobrevém por circunstâncias alheias à vontade do agente”; a pena, salvo alguma exceção, é a do crime consumado, diminuída de um a dois terços.
[3] . Artigo 214 do Código Penal: “constranger alguém, mediante o emprego de violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal”; conjunção carnal, na estrutura do Código Penal, é o ato libidinoso que somente pode ser praticado entre um homem e uma mulher (como a natureza os fez – este acréscimo é de minha autoria), com introdução do pênis na vagina.
[4] . A revisão está prevista no artigo 621 do Código de Processo Penal e somente pode ser pedida pelo réu após o trânsito em julgado da decisão, além da necessidade de estarem presentes outros requisitos.
[5] . “Homem é homem, mulher é mulher/estuprador é diferente, né/toma soco toda hora, ajoelha e beija os pés/e sangra até morrer na rua Dez”, é o que diz, verdadeiramente, a letra da música “Diário de um detento”.

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