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As suspensões do WhatsApp



      Em poucos meses, o funcionamento do aplicativo WhatsApp sofreu três interrupções determinadas por magistrados de comarcas do interior do Brasil, algumas delas cuja existência era por muitos ignorada. Tais suspensões foram determinadas em processos criminais que se apurava o crime de tráfico de entorpecente (ah! O vilão da hora – e há tantas horas – serve de fundamento para qualquer atitude) e se pretendia obter prova buscando dados de comunicação – conversas – arquivadas no aplicativo. Os magistrados que decretaram essa violência certamente não usam o aplicativo oficialmente – quiçá nem para deleite pessoal.
      Em primeiro lugar, é de consignar que embora muitos utilizem o aplicativo para simples deleite, alguns até formando “grupos” (que, convenhamos, em muitas ocasiões torna-se a coisa mais aborrecida de que se tem existência), essa mesma “ferramenta” tem se tornado um importante auxiliar no desenvolvimento de algumas atividades, entre as quais inclui-se a judiciária. É sabido que em algumas partes do Brasil magistrados o têm usado para “conversas” entre as partes visando à busca de uma conciliação; médicos sanam dúvidas de pacientes utulizando o aplicativo (como já aconteceu com um familiar); notícias de inquéritos em andamento podem ser passadas por essa via. Não tenho dúvida de que, tão logo seja regulamentada por lei a sua utilização, o Poder Judiciário o incorporará como meio de comunicação processual, ou seja, como intimação/notificação.
      Deixando, porém, de lado esse aspecto de pura utilidade, há algo mais a ser aduzido para demonstrar o quão equivocadas foram essas decisões. Uma ideia disto pode ser vista no despacho do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Ricardo Lewandowski, ao conceder uma medida liminar para fazer cessar a suspensão. É necessário registrar que a medida foi concedida numa Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF – ajuizada em maio deste ano pelo PPS – Partido Popular Socialista -, contra uma decisão similar tomada pelo juiz de Direito da comarca de Lagarto. A íntegra da decisão do presidente do STF está no “site” do tribunal bastando buscar pela ADPF 403. Ela é muito ilustrativa e mostra o desconhecimento sobre o tema dos juízes que têm decretado a suspensão. 
      O que é mais importante é que tais decisões desrespeitam uma das mais queridas garantias fundamentais constitucionais: o “due processo of law”, em vernáculo “devido processo legal”, e outra garantia que lhe é inerente, o da ampla defesa. É que as malsinadas decisões foram proferidas em processos nos quais a pessoa jurídica proprietária do aplicativo, que é o Facebook, não era parte neles: eram processos criminais que a Justiça Pública movia contra traficantes e ansiava por provas da existência dos delitos e de seus autores. Em poucas palavras: o dono do aplicativo não pôde se defender antes de ter sido punido tão severamente como foi. Poder-se-ia argumentar ainda em desfavor dessas medidas judiciais, que outras menos traumáticas poderiam ser adotadas e que não atingiriam um número tão grande de pessoas que nada fizeram de errado para ter o seu acesso ao direito de comunicação interrompido.
      As decisões que suspenderam o aplicativo me fizeram lembrar uma anedota que corria no meu tempo de estudante de Direito: um juiz de uma comarca do interior do Brasil julgou empatada a demanda e condenou o escrivão nas custas processuais. Ou melhor: me fez lembrar da peça "O juiz de paz da roça", de Martins Pena: o juiz. contrariado porque lhe disseram que ele não podia decretar a prisão de uma pessoa porque a constituição não permitia, assim se manifestou: "escrivão, anote ai: estou revogando a constituição".
     O maior equívoco portanto foi este: num país em que a Constituição determina que estamos num Estado Democrático de Direito e nele que vigora o princípio da legalidade, alguns juízes concedem medida liminar que é uma afronta à essa mesma constituição.

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