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A imunidade parlamentar

    


      Um deputado federal teve, recentemente, apresentadas contra si, na Comissão de Ética da casa legislativa a que pertence, duas representações por duas atitudes que tomou: 1] numa entrevista à apresentadora de um canal no Youtube afirmou que a medida que poderia ser tomada contra certas movimentações populares (referiu-se às que ocorrem no Chile, por exemplo) seria a edição de um AI-5; 2] desrespeitou – segundo a outra representação – uma colega sua, “massacrando-a” nas redes sociais.
      Tão logo percebeu o “estrago” provocado pelas suas atitudes, retratou-se pifiamente quanto à primeira, e quanto a ambas afirmou gozar de imunidade parlamentar. Está enganado.
      A imunidade parlamentar dividia-se em absoluta (ou material) e relativa (ou formal). A primeira está prevista no artigo 53 da Constituição da República Federativa do Brasil nos seguintes termos: “os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Em tese, são imunes quanto aos crimes que podem ser cometidos por essas formas e, na maioria das vezes, constituem-se em crimes contra a honra (calúnia, difamação, injúria exemplificadamente). É óbvio que se um parlamentar cometer um furto, um homicídio, um estupro, não terá a proteção dada por essa imunidade: a norma constitucional é bem clara nesse ponto, não necessitando interpretação.
      A imunidade relativa consistia em ser necessário que o órgão encarregado de julgar o parlamentar solicitasse licença para iniciar o processo. Se fosse deputado, o pedido era endereçado à Câmara; se fosse senador, ao Senado. Essas licenças nunca eram concedidas, de modo que o processo era iniciado mas, pela ausência da licença, quase nunca terminava. Só prosseguiam quando o parlamentar não era reeleito. Um bom (ou mau) exemplo é o do deputado federal Eurico Miranda (sim, aquele que presidiu o Vasco da Gama incontáveis vezes). Ele era réu em várias ações penais no Rio de Janeiro, elegeu-se deputado e nunca foi dada licença. Somente quando não se reelegia é que os processos puderam ter prosseguimento. Algumas pessoas que estavam processadas – antes da lei da Ficha Limpa – candidatavam-se apenas com o intuito de ver os processos a que respondiam fossem paralisados por ausência de licença (caso fossem eleitas, claro). Os pedidos de licença amontoavam-se sequer sendo votados. Quando Michel Temer foi eleito presidente da Câmara, ele resolveu "limpar as gavetas" e todos os pedidos foram votados, não sendo nenhum aprovado. Eram casos escabrosos. Um deputado pelo estado do Amazonas, que era médico, estava sendo processado por estelionato (superfaturamento): por exemplo, num mês foram usados em sua clínica tantos metros de gaze que dariam para envolver todas as múmias do Egito. Tão logo eram diplomados, o processo era paralisados. Esta imunidade deixou de existir por força de emenda constitucional (n° 35).
      Qual o alcance da imunidade absoluta (ou material), a que se refere, como dito, às opiniões, palavras e votos? Uma corrente entende que em qualquer situação o mandato parlamentar é inviolável. Por exemplo, em evento num clube o parlamentar ofende com palavras um sócio, injuriando-o; ou calunia um seu vizinho no condomínio em que reside, acusando-o da prática de um furto. Em ambos os exemplos o parlamentar não poderia ser processado.
      Outra corrente, que relativiza o alcance, entende que as opiniões, palavras e votos devem ser proferidas durante o mandato e tendo estrita relação com o seu exercício. Nos exemplos expostos acima, o parlamentar, ao proferir as ofensas, não estava praticando ato referente ao exercício do mandato, e portanto, não tinha direito à imunidade, podendo, assim, ser criminalmente processado.
      Portanto, ao contrário do que pensa o nobre parlamentar, as suas manifestações de pensamento nos dois casos citados, não são tranquilamente entendidas como alcançadas pela imunidade. A conferir.

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