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Matou o amigo pensando que fosse um javali

 

         A manchete de hoje (4/8/20) em muitos jornais e portais aborda um fato doloroso, mas que, aos olhos do Direito Penal, deve e pode ter uma solução  bem diversa daquilo que pensa a vã filosofia: dois amigos estavam caçando e um deles faz um disparo em direção a um vulto que ele acreditava ser o animal que buscavam, mas, por erro de avaliação, acerta e mata o companheiro de caçada. Em tese, foi cometido um crime contra a vida chamado homicídio – artigo 121 do Código Penal -, porém a solução não deverá ser pura e simplesmente punir o autor por esse crime, mas por um mais brando e, talvez, nem puni-lo.

         Hipoteticamente, esse fato foi à exaustão utilizado como exemplo em aulas de Direito Penal (eu mesmo, nos 30 anos que ensinei essa matéria na Faculdade de Direito da PUCCamp, usei-o incontáveis vezes [o grande penalista Claus Roxin chamava exemplos assim de “exemplos de manual de Direito Penal”]); atuando como Defensor Público perante a Vara do Júri da comarca de Campinas, trabalhei em alguns, não propriamente de caçada, mas de agir pensando que atuava dentro do Direito Penal, mas, na realidade, atuava contra ele. Um desses casos está descrito no meu livro “Casos de júri e outros casos” (“Matando por erro”).

         Para que se reconheça que uma pessoa cometeu um crime é necessário que a sua ação contenha dois requisitos, entre outros tantos: que ela tenha consciência do que faz e queira fazê-lo. Esses dois requisitos são componentes do dolo (divide-se este em direto e eventual; um dos poucos crime em que há essa dicotomia é o homicídio; ademais dessa divisão, o crime de homicídio admite as formas doloso e culposo). Quando uma pessoa atira em outra, atingindo-a e matando-a, ela deve saber (ter consciência) que o faz e ter vontade de fazê-lo (voluntariedade) para que se reconheça presente o artigo 121 do Código Penal.  

         Um desses dois requisitos pode ser eliminado, afastado, por uma ocorrência chamada “erro”, que é a percepção distorcida da realidade (na ignorância há desconhecimento da realidade; no erro, essa realidade é conhecida, porém de forma distorcida). O requisito afastado é justamente a consciência, já que a voluntariedade subsiste.

         O tema está descrito no artigo 20 do Código Penal, com o nome é “erro sobre elementos do tipo”, cujo teor é o seguinte: “o erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei”). A morte é elemento constitutivo do crime de homicídio (“matar alguém”). Então, quando a pessoa comete esse tipo de erro, em que não há consciência da realidade (essa realidade se apresenta distorcida), fica afastado o dolo, podendo, se for o caso, a pessoa ser punida pelo crime culposo. Num caso de homicídio,

         O autor do disparo (e, consequentemente, da morte), poderá ficar isento de pena se ficar comprovado que ele agiu com o dever de cuidado porém nem assim foi possível evitar a ocorrência, todavia, se ele não agiu com as devidas cautelas, desclassificando-se o dolo por ausência de consciência, ele poderá ser punido pela prática do crime de homicídio culposo.

         Obviamente, pensarão alguns, tudo poderá ter sido invenção para acobertar um homicídio doloso, mas somente a apuração criteriosa poderá solucionar esse triste acontecimento. Já adianto: não seria inteligente da parte do autor formular uma teoria rocambolesca para justificar o crime, pois seria mais prático atirar no amigo no meio do mato em que estavam e abandona-lo, em vez de ir à Polícia.

         Melhor: nem atrai-lo ao mato.

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