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O estelionato e a lei anticrime


 

         O nome desse crime contra o patrimônio – estelionato – deriva do latim “stellio”, “stellionis”, que significa camaleão. Já era punido na época do Direito Romano. Dizem alguns doutrinadores que o nome foi dado ao crime como alusão à esperteza desse animal, que, como se sabe à larga, muda de cor para, nas mais das vezes, enganar os seus predadores. Talvez também as suas vítimas, para melhor apanhá-las. O bicho altera a realidade, criando uma ilusão.

         O mesmo se dá no crime em questão: o sujeito ativo altera a realidade para melhor iludir a sua vítima, e, com isso, obter uma vantagem ilícita. O Código Penal o define no artigo 171 assim: “obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer meio fraudulento”, com a pena de 1 a 5 anos de reclusão, mais multa. (Do número do artigo derivou uma gíria policial em que o autor desse crime é chamado de 17 de janeiro [17/1]).

         Vários são os elementos que compõem a descrição do crime, a sabe: a) vantagem ilícita (uma vantagem que não tenha nenhum suporte jurídico a validá-la) que deve ser obtida para si ou para outrem (para o sujeito ativo ou terceira pessoa); b) induzindo ou mantendo alguém em erro (a percepção equivocada da realidade); c) mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento).

         O estelionato faz parte da folclore brasileiro desde sempre (antigamente chamado genericamente de “conto do vigário” - há uma explicação para esse nome na qual entra um falso vigário)) e os “golpes” faziam jus à criatividade do criminoso, sendo o mais famoso o “conto do bilhete premiado”: este, é óbvio, é da época em que havia apenas a loteria de bilhetes e não esta variedade enorme de modalidades: lotofácil, dupla sena, mega sena, lotomania, timemania, dia de sorte. Porém, por incrível que pareça, ainda hoje incautos caem nesse golpe. Outro golpe famoso era o “conto da guitarra”, em que o golpista vendia uma máquina de fazer dinheiro, que, na verdade, não fazia nada. Era pura ilusão (leia na matéria abaixo).

         Na classificação do Código Penal, esse crime era de ação penal pública incondicionada, ou seja, mesmo que a vítima não procurasse a polícia (e muitos não iam envergonhados por terem “caído” no golpe), o sujeito ativo seria processado criminalmente; ou seja, mesmo contra a vontade da vítima o sujeito ativo podia ser punido).

         Na lei anticrime foi criado um obstáculo à punição do estelionatário: a partir dela, caso a vítima queira que o seu algoz seja punido, ela precisa tomar uma providência chamada “representação”, na qual exponha que quer ver o “camaleão” punido e isso deve ser feito no prazo de seis meses contados a partir da data do fato. Se ela não o fizer, ocorrerá a extinção da punibilidade por conta de um fenômeno chamado “decadência” (no caso, do direito de representação). Então, como, muitas vezes a vítima sente-se envergonhada por ter caído no "conto" (veja reportagem abaixo), ela terá esses seis meses para meditar sobre o pedido de medidas punitivas contra o camaleão.

         Há muito essa era uma ideia que animava os legisladores e tentou-se algumas vezes implantá-la sem sucesso. Agora conseguiram.

 

O CONTO DA GUITARRA – O vigarista escolhe quase sempre um rico comerciante ou um fazendeiro e faz uma proposta. Explica que tem um amigo em São Paulo que faz notas de mil cruzeiros (o texto segue o original daquela época), mas que, depois de um certo tempo de atividades, tem encontrado dificuldades com a Polícia. Por causa disso, resolveu vender a máquina. Mostra algumas notas de mil cruzeiros para que sejam examinadas. Depois disto, propõe negócio. A vítima, depois de examinar atentamente o dinheiro "falso", conclui que é idêntico ao verdadeiro. Resolvem dar uma volta pela cidade, ocasião em que o vigarista troca com facilidade o dinheiro, fazendo algumas pequenas compras. Para terminar de uma vez com as poucas dúvidas que a vítima ainda tem, o vigarista dirige-se até a caixa de uma agência bancária, onde também troca o dinheiro. Depois disto vem a pergunta inevitável: "se a máquina imprime notas tão perfeitas, porque seu amigo quer vendê-la?" O vigarista conta que, com a perseguição da Polícia, ele anda bastante amedrontado, uma vez que já distribuiu milhares de notas falsas e não quer se arriscar a ser preso. Após as experiências e as explicações, o malandro diz que seu amigo está disposto a entregar a máquina por 500 mil cruzeiros (uma fortuna na época). Achando o preço muito alto, mas convencido, a vítima marca encontro em um lugar deserto com o proprietário da "guitarra". No dia e hora combinado, o dono da máquina chega com ela embrulhada e começam a discutir sobre a transação. Depois de desembrulhar a máquina – um rolo montado sobre uma caixa, movida por uma manivela – a vítima solicita uma demonstração. O vigarista introduz uma folha de papel branco do tamanho de uma cédula de mil cruzeiros, no lado esquerdo da máquina. Vira a manivela e sai uma nota novinha em folha. A demonstração é repetida diversas vezes, deixando a vítima entusiasmada. Não espera muito e entrega aos vigaristas o dinheiro combinado e corre para casa, carregando a caixa, satisfeito com o negócio realizado. Assim que chega, ansioso, enfia papéis brancos na máquina e começa a fabricação. Por algumas vezes consegue retirar notas de mil cruzeiros, mas depois a máquina para de "produzir", embora continue a consumir papéis.

Fonte: Memória da Polícia Civil de São Paulo

“Parece que fui hipnotizada”, resume Cezarina da Silva, 75, ao se lembrar de como foi enganada por dois estelionatários em abril de 2016. Ela foi abordada em Londrina (PR) por uma mulher que se dizia analfabeta e procurava um endereço. Tinha em mãos um bilhete supostamente premiado e precisava de ajuda para sacar a bolada. Enquanto conversavam, um homem bem-vestido se aproximou perguntando se precisavam de ajuda. Inteirado da situação, fingiu ligar para um conhecido da Caixa Econômica Federal, que confirmou: eram exatamente aqueles os números sorteados. Fim do primeiro ato. Depois de muita conversa, a mulher propôs dar 10% do prêmio se os dois a ajudassem. Seriam R$ 350 mil p... - Veja mais em https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/11/20/golpe-do-bilhete-premiado.htm?cmpid=copiaecola

        

 

 

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