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Ainda o aborto

No Brasil, a legislação penal admite em somente duas situações que a gravidez seja interrompida: quando a gestação deu-se em virtude de estupro ou quando há risco de vida para a gestante. Na primeira, a gestante deve decidir ("aborto sentimental"); na segunda, o médico é quem decide ("aborto terapêutico"). Claus Roxin classifica este modelo de "solução de indicações", contraposto ao modelo "solução de prazo". Pelo primeiro, a princípio o aborto é punível, exceto nos casos em que é indicado como solução (gravidez decorrente de crime sexual, por exemplo). Pelo segundo, a gravidez pode ser interrompida conforme a vontade da gestante num determinado prazo, em geral, segundo o autor, de até 3 meses. Este segundo modelo é seguido em vários países europeus, como Itália, Espanha e Portugal, que são países de direito escrito. Nos EUA ele é permitido por conta de uma decisão da Suprema Corte no caso Roe x Wade (é interessante lê-lo, no "site" da própria corte, bem como na Wikipedia).
Alguns países da Europa - a Espanha, por exemplo - adotaram uma "solução de indicação"quando ocorrer a má formação do feto que o torne inviável para a vida extra-uterina, podendo, então, a gravidez ser interrompida a qualquer tempo. Conforme escrevi ontem, no Brasil já houve há tempo a tentativa de incluir nas indicações que "legalizam" o aborto o fato de o feto possuir alguma má formação que o torne inviável para a vida fora do útero. Na verdade, foram algumas tentativas, mas, como o tema é muito polêmico, os projetos acabaram se estagnando nas casas legislativas de Brasília. Os que se põem contra essa modalidade de aborto temem - já o demonstraram em suas argumentações - que seja o primeiro passo dado em direção ao aborto eugênico ou eugenésico, em que se interrompe a gravidez para, digamos, "melhorar a raça". Alguns dos opositores falaram que seria o primeiro passo em direção à interrupção da gravidez se o feto for portador de síndrome de Down: pois o penalista alemão, esgrimindo com o princípio da dignidade da pessoa humana, entende que a mãe pode interromper a gravidez em caso de síndrome de Down, porque o Estado não pode lhe impor esse ônus de dedicar a sua vida a uma pessoa que necessite de muitos cuidados. Se ela optar por isso, diz o penalista, estará realizando um alto valor ético; porém não pode o Estado impor-lhe essa atitude.
A Comissão nomeada pelo Senado Federal para redigir um anteprojeto de Código Penal já manifestou o desejo de fazer constar no texto não mais uma indicação, a anencefalia, como a solução de prazo, em que a gestante poderá, até a 12a semana, interromper a gravidez.
Silvio Artur Dias da Silva

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