Célia foi empregada doméstica na minha casa. Era uma boa empregada. Deixou emprego por conta própria - pediu demissão – pois iria mudar de ramo, provavelmente ser comerciária.
Certa tarde, chegando à Vara do Júri para participar das audiências dos processos cujas defesas estavam a cargo da PAJ, encontrei-a ali e, depois dos cumprimentos, fiz-lhe a indefectível pergunta: “o que você está fazendo aqui?”. Ela respondeu-me que estava exatamente à minha espera, pois precisava falar comigo: a mãe dela estava sendo processada e a acusação era de homicídio contra o marido (e pai de Célia). Fora presa e encaminhada ao presídio feminino; um advogado fora contratado e conseguira liberdade provisória para a mãe. Não tinham condições de contratar outro – ou, quiçá, manter o mesmo – para atuar na defesa da mãe. O caso seria defendido pela PAJ. Coincidentemente, pelo número final do processo, caberia a mim a defesa.
Inteirei-me do caso: os pais moravam num barraco na famosa rua Moscou – na época, um local com um dos mais altos índices de criminalidade de Campinas. A mãe havia sido atropelada e ficara gravemente lesionada: havia fraturado o fêmur. Submetida a uma cirurgia, foram implantados pinos nesse osso e ela deambulava com o auxílio de uma bengala. O pai era alcoólico. Brigaram na cozinha. O pai, já alcoolizado, queria dinheiro para beber mais. A mãe negara. Ele a agredira, derrubando-o no chão. Ela, caída e com dificuldade de levantar-se por conta da deficiência que o acidente produzira, alcançou uma faca que estava na mesa. Armou-se. O primeiro golpe foi na perna. Ele caiu. Ela esfaqueou-o várias vezes. Matou-o. Não havia testemunha presencial.
Minha primeira providência foi pedir que alguém levasse à PAJ todos os documentos médicos – radiografias, inclusive – para que eu requeresse a juntada de todos aos autos do processo. As testemunhas, na maioria parentes, relataram o atropelamento que a mãe sofrera, o vício da embriaguez do pai, as constantes brigas.
Feita a instrução criminal contraditória, a mãe – Aparecida – foi pronunciada; era impossível pensar em absolvição naquele momento processual.
O julgamento foi desaforado para a Vara do Júri da comarca de Jundiaí. Fui atuar em sua defesa, excepcionalmente, pois a tanto não estava obrigado, já que minha atuação restringia-se à cidade de Campinas. Lá, o Juiz de Direito teria que nomear um dativo particular para defendê-la. Como já conhecia de sobejo o caso, fui. Nem foi preciso muito esforço: antes de iniciar-se a sessão de julgamento, conversando com o Promotor de Justiça que atuaria na acusação, disse-lhe que a tese de defesa – única, aliás – era o homicídio privilegiado: caso condenada, seria imposta a pena de 4 anos de reclusão, e, frente à primariedade da acusada, seria possível fixar o regime aberto desde o início. O Promotor concordou e antecipou-se à minha fala, requerendo ele mesmo o reconhecimento do homicídio privilegiado: os jurados à unanimidade assim decidiram e a pena privativa de liberdade – reclusão – foi imposta no mínimo legal, 4 anos, a ser cumprida integralmente no regime aberto.
A sessão de julgamento durou muito pouco tempo e Aparecida pôde voltar de carona comigo. Além de defendê-la, servi-lhe como transportador. Ossos do ofício de quem atuava na PAJ.
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