Dona Luzia – é
melhor chamá-la assim, pois era, quando do julgamento, sexagenária – foi
denunciada sob a acusação de haver matado o marido por envenenamento: portanto,
homicídio qualificado e com agravante do parentesco (cônjuge). O processo
tramitou por Campinas, mas o julgamento deu-se na Vara Distrital de Valinhos;
foi, aliás, o primeiro julgamento pelo júri realizado naquela hoje comarca.
Moravam na área
rural, em um sítio, o casal e os filhos. Ela era constantemente maltratada por
ele, que, além disso, entregava-se ao consumo desmedido de bebida alcoólica,
mais especificamente, pinga.
Cansada daquela
vida de sofrimento, ela colocou algumas gotas de formicida na garrafa de pinga
do marido. Ele, sem saber, ingeriu um gole, sentiu que estava estranho o gosto,
olhou contra a luz e viu que o líquido estava leitoso. Começou a sentir-se mal,
chamou um dos filhos e lhe disse que a mulher havia colocado veneno no
aguardente. O filho pretendeu leva-lo ao hospital. Ele não quis, dizendo que tomaria
um copo de leite e ficaria bem. Não melhorou, obviamente: desencarnou.
Dona Luzia foi
processada sob a acusação de haver praticado homicídio qualificado pelo emprego
de veneno e havia, ainda, a circunstância agravante da vítima ser seu cônjuge.
A instrução foi realizada na Vara do Júri da comarca de Campinas e,
pronunciada, foi o julgamento marcado para a cidade de Valinhos, que, naquela
época, era uma vara distrital da comarca de Campinas.
Não havia
praticamente o que alegar em sua defesa: ela confessara em ambas as
oportunidades em que fora ouvida (tanto no inquérito policial, quanto na
instrução criminal) ter adicionado veneno à bebida do marido; a perícia
constatara que a morte se dera por envenenamento; eles eram casados; tudo
estava, portanto, provado.
Dois alunos da
Faculdade de Direito da PUCCamp, que haviam sido meus alunos e eram meus
monitores[1], e
que já haviam participado de um julgamento comigo (coincidentemente, uma
mulher, Maria de Fátima, que matara o marido, mas com disparos de arma de fogo)
ficaram encarregados de atuar na defesa e a tese seria o homicídio privilegiado
(eu faria a introdução – saudação – e o encerramento): se aceita pelos jurados,
a pena de 12 anos de reclusão seria diminuída entre um terço e um sexto, o que
daria, dependendo da benevolência do magistrado na fixação da pena, se
diminuísse de um terço, uma pena de 8 anos; compensando a agravante de ter sido
praticado contra cônjuge com a atenuante da confissão espontânea, a pena final
seria essa, de 8 anos, o que daria, pelo menos, que fosse o cumprimento
iniciado no regime semi-aberto[2].
No dia do seu julgamento,
ela foi interrogada e, ao término desse ato processual, o magistrado indagou se
ela queria acrescentar algo mais e ela, aos prantos, disse que não tinha a
intenção de matá-lo; que a dose de veneno colocada fora ínfima, apenas com a
intenção de provocar nele um mal estar, dano até, ao seu organismo,
principalmente estômago, para que ele não mais ingerisse bebida alcoólica.
Notei que essa atitude impressionou vivamente os jurados. Olhei para os
estagiários e disse-lhes: “podem guardar as anotações; eu vou fazer a defesa
inteira e a tese será lesão corporal seguida de morte[3] e
não mais homicídio”.
E foi o que
fiz: pedi a desclassificação para lesão corporal seguida de morte e enfatizei
tanto as condições sofridas em que ela vivia ao lado do marido (um dos filhos
depôs e disse que o pai era dado à zoofilia) que uma das juradas não conteve as
lágrimas. Na sala secreta, os jurados, por unanimidade, acolheram a tese da
defesa.
Mas havia mais
um problema: a pena mínima de 4 anos de reclusão deveria ser agravada
duplamente, primeiro, pelo emprego de veneno; segundo, por ser a vítima
cônjuge. Havia apenas um atenuante: confissão espontânea. O cálculo daria uma
pena superior a 4 anos, o que faria com que ela tivesse de iniciar o
cumprimento no regime semi-aberto.
Porém, o magistrado equivocou-se (e tudo indica que foi um equívoco
consciente) na fixação da pena e em vez de uma atenuante, reconheceu duas:
confissão espontânea e maior de 60[4].
Compensando as atenuantes com as agravantes, a pena final foi de 4 anos de
reclusão a ser cumprida desde o início (e integralmente, portanto) no regime
aberto – prisão albergue.
[1] . Luís Eduardo Vidotto de
Andrade e Antonio Cândido Reis de Toledo Leite.
[2] . Até 4 anos de pena
privativa de liberdade (exceto quando se trata de crime hediondo), pode ser
fixado o regime aberto desde o início; de 4 a 8 anos, regime semi-aberto; acima de 8,
regime fechado. Esta classificação leva em conta apenas a quantidade de pena;
outros requisitos, porém, são necessários, como, por exemplo, a primariedade do
condenado.
[3] . Artigo 129, parágrafo
3°, do Código Penal: “se resulta morte e as circunstâncias evidenciam que o
agente não quis o resultado, nem assumiu o risco de produzi-lo”; nesse caso, a
pena é de 4 a
12 anos de reclusão.
[4] . A atenuante etária
ocorre, numa das hipóteses, quando o réu é maior de 70 anos – Código Penal,
artigo 64, inciso I.
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