Pular para o conteúdo principal

Furto e vontade da vítima

O crime de furto está descrito no artigo 155 do Código Penal: "subtrair para si ou para outrem coisa alheia", com a pena de reclusão, de 1 a 4 anos, mais multa (de 10 a 360 dias-multa, cada um no valor de 1/30 do salário mínimo a 5 vezes o salário mínimo. Esta descrição, perfeita, é do ano de 1.940, ano do decreto-lei que instituiu o Código. O ladrão será processado independemente da vontade da vítima, pois se trata de ação penal pública: a autoridade que tomar conhecimento do fato deverá iniciar o procedimento tendente a apurar o fato; se for procedente, impor a pena ao autor da subtração.
De tempos até esta data têm surgido iniciativas de modificar a lei, no sentido de dar um pouco de voz à vítima, ouvindo-a se pretende a punição do ladrão (como Procurador do Estado atuando em defesa de acusados que não podiam custear os honorários de advogado, vi vária vez a vítima pretendendo "paralisar" o processo, seja porque a coisa era de pequeno valor [hoje aplica-se o princípio da insignificância], seja porque o transtorno de ir ao fórum para participar da audiência causava-lhe mais prejuízo do que a subtração em si).
Os estudiosos do Direito Penal afirmam que a coisa alheia móvel, objeto material do crime de furto, é um bem disponível e que, portanto, o consentimento do ofendido (vítima) pode afastar a tipicidade do fato. O consentimento, porém, para ser válido, deve preencher alguns requisitos: livre de qualquer constrangimento, recair sobre bem disponível (como no caso do furto) e proveniente de pessoa capaz. Claus Roxin dá um exemplo interessante: uma pessoa é despertada por ruídos provenientes da sala de sua casa; levanta-se e vê um ladrão desligando os fios do aparelho de dvd; numa "romântica troca de opinião", a vítima diz ao ladrão: "pode levar o aparelho, mas deixe os filmes porque eles têm valor afetivo para mim". Ele consentiu com a subtração e o fato deixou de ser típico. O exemplo do mestre alemão remete a outro requisito do consentimento do ofendido: deve ocorrer antes ou durante a ação, nunca depois.
O portal do Superior Tribunal de Justiça (stj.jus.br) traz hoje como uma das manchetes isto: "novo Código Penal: processo por furto dependerá de representação da vítima". Ou seja: finalmente, será (caso o projeto seja aprovado) dada voz à vítima, que dirá, fazendo uma representação, se pretende a punição do autor da subtração.
Mas FSP, caderno Cotidiano, traz esta manchete: "Novo Código Penal propõe conciliação com o ladrão". Esta manchete difere do contido no portal do STJ: somente depois de analisar o texto é que será possível emitir uma opinião.
Silvio Artur Dias da Silva

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A assessora exonerade

Um fato tomou a atenção de muitos a partir de domingo quando uma assessora “especial” do Ministério da Integração Racial ofendeu a torcida do São Paulo Futebol Clube e os paulistas em geral. Um breve resumo para quem não acompanhou a ocorrência: a final da Copa do Brasil seria – como foi – no Morumbi, em São Paulo. A Ministra da Integração Racial requisitou um jato da FAB para vir à capital na data do jogo, um domingo, a título de assinar um protocolo de intenções (ou coisa que o valha) sobre o combate ao racismo (há algum tempo escrevi um texto sobre o racismo nos estádios de futebol). Como se sabe, as repartições públicas não funcionam aos domingos, mas, enfim, foi decisão da ministra (confessadamente flamenguista). Acompanhando-a veio uma assessora especial de nome Marcelle Decothé da Silva (também flamenguista). Talvez a versão seja verdadeira – a assinatura do protocolo contra o racismo – pois é de todos sabido que há uma crescente preocupação com o racismo nos estádios de fu

Por dentro dos presídios – Cadeia do São Bernardo

      Tão logo formado em Ciências Jurídicas e Sociais e tendo obtido a inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil, prestei auxílio num projeto que estava sendo desenvolvido junto à Cadeia Pública de Campinas (esta unidade localizava-se na avenida João Batista Morato do Canto, n° 100, bairro São Bernardo – por sua localização, era apelidada “cadeião do São Bernardo”) pelo Juiz de Direito da 2ª Vara Criminal (que cumulava a função de Corregedor da Polícia e dos Presídios), Roberto Telles Sampaio: era o ano de 1977. Segundo esse projeto, um casal “adotava” uma cela (no jargão carcerário, “xadrez”) e a provia de algumas necessidades mínimas, tais como, fornecimento de pasta de dentes e sabonetes. Aos sábados, defronte à catedral metropolitana de Campinas, era realizada uma feira de artesanato dos objetos fabricados pelos detentos. Uma das experiências foi uma forma de “saída temporária”.       Antes da inauguração, feita com pompa e circunstância, os presos provisórios eram “aco

Matando por amor

Ambas as envolvidas (na verdade eram três: havia um homem no enredo) eram prostitutas, ou seja, mercadejavam – era assim que se dizia antigamente – o próprio corpo, usando-o como fonte de renda. Exerciam “a mais antiga profissão do mundo” (embora não regulamentada até hoje) na zona do meretrício [1] no bairro Jardim Itatinga.             Logo que a minha família veio de mudança para Campinas, o que se deu no ano de 1964, a prostituição era exercida no bairro Taquaral, bem próximo da lagoa com o mesmo nome. Campinas praticamente terminava ali e o entorno da lagoa não era ainda urbanizado. As casas em que era praticada a prostituição, com a chegada de casas de família, foram obrigadas a imitar o bairro vermelho de Amsterdã:   colocar uma luz vermelha logo na entrada da casa para avisar que ali era um prostíbulo. Com a construção de mais casas, digamos, de família,   naquele bairro, houve uma tentativa de transferir os prostíbulos para outro bairro que se formava, mais adiante