Pular para o conteúdo principal

Confissão e tortura


 
            A comprovação de que quatro rapazes suspeitos de terem praticado estupro e homicídio contra uma garota numa cidade do estado do Paraná foram torturados e (supostamente) confessaram faz renascer dois temas extremamente polêmicos no campo do Direito Penal e do Direito Processual Penal (e dos Direitos Humanos, claro): o emprego da tortura para a obtenção de confissão e a própria confissão como meio de prova.
            A tortura foi empregada para extorquir confissões durante largo período, especialmente no período do medievo. Um dos patriarcas da humanização do Direito Penal, Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria, escreveu em seu “pequeno grande livro”, “Dos delitos e das penas”, de 1764, sobre a tortura: “é uma barbárie consagrada pelo uso na maioria dos governos aplicar a tortura a um acusado enquanto se faz o processo, seja para que ele confesse a autoria do crime, seja para esclarecer as contradições em que tenha caído, seja para descobrir os cúmplices ou outros crimes de que não é acusado, seja finalmente porque sofistas incompreensíveis pretenderam que a tortura purgava a infâmia” (§ XII). Palavras avançadas para a época, especialmente vindas de um nobre de 26 anos. Naquela época, as penas eram eminentemente corporais, castigos físicos e a morte, de forma que a tortura era, por assim dizer, uma antecipação da punição. Mas a tortura continuou a ser empregada contra presos “comuns”, especialmente no Brasil. Veio o golpe militar de ’64 e ela passou a ser empregada contra presos “políticos”, provocando mortes (Wladimir Herzog, por exemplo). Veio a “redemocratização” e na sua esteira a “constituição cidadã” que passou a considerar a “prática da tortura” crime inafiançável, insuscetível de graça ou anistia e lei infraconstitucional (nº 8.072/90) passou a considerá-la crime hediondo; finalmente, ela foi criminalizada pela lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997. Durante quase 2 anos, quando cursava Direito (anos de 1974, 1975 e 1976), trabalhei num cartório criminal da comarca de Campinas e não raras vezes vi réus sendo trazidos para a audiência de interrogatório com evidentes sinais de tortura. Alguns caminhavam com dificuldade de tão feridos. Algumas delegacias de polícia tinham como equipamentos obrigatórios a máquina de choque e o pau-de-arara. Depois "evoluíram" para o "afogamento".
            De outra parte, a confissão era tida como “a rainha das provas”, ao passo que a prova testemunhal era “a prostituta das provas”. Para um processualista brasileiro, o interrogatório do réu no processo era comparado ao coração no corpo humano: o órgão mais importante. Curiosamente, é no interrogatório que acontecia - e acontece ainda - a confissão. O acusado era advertido que o silêncio poderia ser prejudicial a sua defesa. Desgraçadamente, o interrogatório do acusado era o primeiro ato processual, o que praticamente inviabilizava o direito de (ampla) defesa, na modalidade autodefesa (principalmente). Ademais, sempre se discutiu se o interrogatório - momento em que se pode dar a confissão - é meio de prova ou meio de defesa.
            Paulatinamente, foram vindo as alterações (coloco-as aqui não em ordem cronológica): a “constituição cidadã”, a Convenção Americana de Direitos Humanos, a Lei nº 10.792/03 e a Lei nº 11.719/08. O interrogatório passou a ser o último ato processual a ser realizado, sempre na presença de defensor (constituído ou não, com quem deve se entrevistar antes de ser interrogado), sendo o réu informado que não está obrigado a responder às perguntas que lhe forem formuladas e o seu silêncio não poderá importar em seu prejuízo (já em tempos da “constituição-cidadã” e da Convenção Americana de Direitos Humanos, uma câmara [de gás] do TACrimSP construiu a seguinte jurisprudência: “quem é inocente proclama aos altos brados a sua inocência; não permanece em silêncio... – Hitler faria melhor...).
            Em tempos de Estado Democrático de Direito e de progresso das provas (técnicas) periciais, como o exame de DNA, por exemplo, a tortura está caindo em desuso. Porém, é certo, sempre existirão aqueles representantes (in)dignos de Torquemada, ávidos para empregarem esse meio bestial de produção de prova processual-penal. Poderia falar aqui sobre países que, em determinadas situações, admitem o uso da tortura, mas, antes disso, recomendo a leitura do livro "O bom uso da tortura"("ou como as democracias justificam o injustificável"), de Michel Terestchenko.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A assessora exonerade

Um fato tomou a atenção de muitos a partir de domingo quando uma assessora “especial” do Ministério da Integração Racial ofendeu a torcida do São Paulo Futebol Clube e os paulistas em geral. Um breve resumo para quem não acompanhou a ocorrência: a final da Copa do Brasil seria – como foi – no Morumbi, em São Paulo. A Ministra da Integração Racial requisitou um jato da FAB para vir à capital na data do jogo, um domingo, a título de assinar um protocolo de intenções (ou coisa que o valha) sobre o combate ao racismo (há algum tempo escrevi um texto sobre o racismo nos estádios de futebol). Como se sabe, as repartições públicas não funcionam aos domingos, mas, enfim, foi decisão da ministra (confessadamente flamenguista). Acompanhando-a veio uma assessora especial de nome Marcelle Decothé da Silva (também flamenguista). Talvez a versão seja verdadeira – a assinatura do protocolo contra o racismo – pois é de todos sabido que há uma crescente preocupação com o racismo nos estádios de fu

Por dentro dos presídios – Cadeia do São Bernardo

      Tão logo formado em Ciências Jurídicas e Sociais e tendo obtido a inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil, prestei auxílio num projeto que estava sendo desenvolvido junto à Cadeia Pública de Campinas (esta unidade localizava-se na avenida João Batista Morato do Canto, n° 100, bairro São Bernardo – por sua localização, era apelidada “cadeião do São Bernardo”) pelo Juiz de Direito da 2ª Vara Criminal (que cumulava a função de Corregedor da Polícia e dos Presídios), Roberto Telles Sampaio: era o ano de 1977. Segundo esse projeto, um casal “adotava” uma cela (no jargão carcerário, “xadrez”) e a provia de algumas necessidades mínimas, tais como, fornecimento de pasta de dentes e sabonetes. Aos sábados, defronte à catedral metropolitana de Campinas, era realizada uma feira de artesanato dos objetos fabricados pelos detentos. Uma das experiências foi uma forma de “saída temporária”.       Antes da inauguração, feita com pompa e circunstância, os presos provisórios eram “aco

Matando por amor

Ambas as envolvidas (na verdade eram três: havia um homem no enredo) eram prostitutas, ou seja, mercadejavam – era assim que se dizia antigamente – o próprio corpo, usando-o como fonte de renda. Exerciam “a mais antiga profissão do mundo” (embora não regulamentada até hoje) na zona do meretrício [1] no bairro Jardim Itatinga.             Logo que a minha família veio de mudança para Campinas, o que se deu no ano de 1964, a prostituição era exercida no bairro Taquaral, bem próximo da lagoa com o mesmo nome. Campinas praticamente terminava ali e o entorno da lagoa não era ainda urbanizado. As casas em que era praticada a prostituição, com a chegada de casas de família, foram obrigadas a imitar o bairro vermelho de Amsterdã:   colocar uma luz vermelha logo na entrada da casa para avisar que ali era um prostíbulo. Com a construção de mais casas, digamos, de família,   naquele bairro, houve uma tentativa de transferir os prostíbulos para outro bairro que se formava, mais adiante