Pular para o conteúdo principal

A internet do vizinho e a "res derelicta"





            O Tribunal Regional Federal da 1ª Região negou provimento a um recurso do Ministério Público Federal interposto contra a absolvição de uma pessoa acusada de ter praticado delito previsto numa lei específica, a nº 9.472, de 16 de julho de 1997, que versa sobre telecomunicações. O delito está descrito no artigo 183 dessa lei especial, cujo teor é o seguinte: “desenvolver clandestinamente atividade de telecomunicação”. As penas são de detenção, de 2 a 4 anos (aumentada de metade se houver dano a terceiro) e multa de R$10.000,00. Entendeu o relator – no que foi acompanhado pelos demais – que tal conduta era juridicamente irrelevante. O réu havia “compartilhado” o serviço que houvera contratado com outras pessoas.
            Diferente situação é a da pessoa que se “apropria” do sinal de internet de seu vizinho. A Parte Especial do Código Penal é do ano de 1940 e pela sua vetustez muitos “juristas “, especialmente aqueles da mídia, dizem que ele está ultrapassado. Crasso engano. Em muitos pontos, ele é totalmente atual, como, por exemplo, nos crimes patrimoniais, tais como furto e estelionato, assim como apropriação de coisa achada. É que estes delitos são classificados como “de forma livre”, o que vale dizer, podem ser cometidos por qualquer meio que a imaginação humana conseguir criar. O crime de furto, por exemplo. A sua descrição, que está no artigo 155, é esta: “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”. Surrupiar a carteira do bolso da vítima utilizando a mão; “afanar” uma joia de uma vitrine com uma vara de pescar; treinar um sagui para passar por um vão estreito e retirar um objeto do local.
            Porém, à caracterização crime de furto é necessário que a coisa tenha dono e isto fica muito claro pela palavra constante do tipo “alheia”: ela deve ser de outrem e o seu proprietário deve ter a vontade de tê-la para si: se ele a desprezar, abandonando-a, quem a encontrar e dela se apropriar não cometerá nenhum ilícito penal. A isso se chama “res derelicta” (coisa abandonada). Em português há uma palavra derivada dessa, derrelito, que justamente significa abandonado, posto de lado. Se o proprietário, todavia, perde-la e alguém acha-la e dela se apropriar, cometerá o crime de apropriação de coisa achada.
            Com o advento da “internet”, surgiu, em algumas áreas do Direito Penal, alguma perplexidade, como, por exemplo, nos crimes contra a honra: é possível atingir a honra de alguém por esse meio eletrônico? A resposta foi afirmativa. Com o surgimento da “wireless”, em que as ondas se espalham e podem ser acessadas por pessoas além do adquirente do serviço, nova dúvida surgiu.
            Para melhor entendimento, é necessário fazer uma comparação com outros serviços, tais como o de energia elétrica e um mais recente, o de televisão a cabo. O Código Penal estabelece no parágrafo 3º do artigo 155 que a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico é equiparada à coisa móvel. Tendo em vista a equiparação, quando alguém faz um “gato” no poste “puxando” a energia sem pagar por ela, comete o crime de furto; identicamente se ele colocar um “chupa-cabra” no relógio marcador do consumo de energia. Há uma filigrana jurídica quanto à forma de obtenção da vantagem, podendo, dependendo da forma de realização, constituir-se no crime de estelionato.
            Além da equiparação, é necessário que a coisa seja subtraída: este é o verbo do tipo, é a ação que deve ser praticada pelo sujeito ativo. Um sinônimo do verbo subtrair é tirar, ou seja, fazer algum esforço para conseguir ter a coisa.
            No caso do “wireless”, a coisa – a onda – se espalha “invadindo” as casas das pessoas que se encontram nas proximidades do local em que está o adquirente do serviço. Se ele não protege-la com uma senha, providência que é tão fácil que até uma criança consegue fazer, ele a está desprezando, abandonando-a, de forma que quem dela se “apropriar”, não cometerá nenhum crime patrimonial. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Câmeras corporais

A adoção da utilização de câmeras corporais por policiais militares gerou – e gera – alguma controvérsia no estado de São Paulo, tendo sido feita uma sugestão que mais lembra um pronunciamento de Eremildo, o Idiota (personagem criado por Elio Gaspari): “os soldados da força policial usariam as câmeras, mas as ligariam apenas quanto quisessem”. Essa tola sugestão tem como raiz o seguinte: nas operações em que pode haver alguma complicação para o policial ele não aciona a câmera; mas demais, sim. Apenas a título informativo, muitos países do mundo tem adotado essa prática: em algumas cidades, como, por exemplo, nos Estados Unidos, até os policiais que não trajam fardas estão utilizando esses aparatos. Mas, a meu ver, o debate tem sido desfocado, ou seja, não se tem em vista a real finalidade da câmera, que é a segurança na aplicação da lei penal, servindo também para proteger o próprio agente da segurança pública (tendo exercido, enquanto Procurador do Estado, a atividade de Defensor...

A memória

A BBC publicou tempos atrás um interessante artigo cujo título é o seguinte: “O que aconteceria se pudéssemos lembrar de tudo” e “lembrar de tudo” diz com a memória. Este tema – a memória- desde sempre foi – e continua sendo – objeto de incontáveis abordagens e continua sendo fascinante. O artigo, como não poderia deixar de ser, cita um conto daquele que foi o maior contista de todos os tempos, o argentino Jorge Luis Borges, denominado “Funes, o memorioso”, escrito em 1942. Esse escritor, sempre lembrado como um dos injustiçados pela academia sueca por não tê-lo agraciado com um Prêmio Nobel e Literatura, era, ele mesmo, dotado de uma memória prodigiosa, tendo aprendido línguas estrangeiras ainda na infância. Voltando memorioso Funes, cujo primeiro nome era Irineo, ele sofreu uma queda de um cavalo e ficou tetraplégico, mas a perda dos movimentos dos membros fez com que a sua memória se abrisse e ele passasse a se lembrar de tudo quanto tivesse visto, ou mesmo (suponho) imaginado...

Legítima defesa de terceiro

Um dos temas pouco abordados pelos doutrinadores brasileiros é o da legítima defesa de terceiro; os penalistas dedicam a ele uma poucas páginas, quando muito. Essa causa de exclusão da ilicitude vem definida no artigo 25 do Código Penal: “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Nessa definição estão contidos os elementos da causa de exclusão em questão: uso moderado dos meios necessários; existência de agressão atual ou iminente; a direito seu ou de outrem. Como se observa facilmente, a defesa é um repulsa a uma agressão, ou seja, é uma reação a uma agressão, atual (que está acontecendo) ou iminente (que está para acontecer). Trata-se, a causa de exclusão em questão, de uma faculdade que o Estado põe à disposição da pessoa de defender-se pois em caso contrário a atuação estatal na proteção dos cidadãos tornar-se-ia inútil. Não é uma obrigação, é uma faculdade. Caso, na...