Pular para o conteúdo principal

Furtos em caixas eletrônicos e a materialidade do crime




            A “onda” teve início por volta do ano de 2007 e a princípio os “amigos do alheio” tinham acesso ao dinheiro que estava no interior do caixa eletrônico utilizando maçarico para arrombar o dispositivo. Para realizar o delito, era necessário, além de organização, habilidade: o operador do maçarico tinha que ter conhecimento do seu manuseio. Na etapa seguinte, talvez movidos pela impaciência, passaram a “explodir” a máquina, muitas vezes utilizando dinamite. Entrementes, para dificultar a ação criminosa, foi colocado um dispositivo com tinta cor laranja que manchava indelevelmente as notas e as tornava inúteis. Nada servia para deter a sanha dos ladrões.
            Corria o ano de 2008 quando fui procurado por uma pessoa que eu conhecia havia tempos, funcionário de um universidade estadual, que queria que eu assumisse a defesa de um dos seus filhos - ele estava preso, acusado de integrar uma quadrilha que praticava furtos em caixas eletrônicos. A prisão, inicialmente temporária, depois preventiva, fora decretada no inquérito (e depois processo) em que era apurado o crime de quadrilha. Inteirei-me do conteúdo do feito e assumi a defesa. Havia escuta telefônica (naquela época, a escuta era uma autêntica “farra”: com uma fundamentação frágil era decretada a escuta e depois prorrogada “ad aeternum”, o que levou o CNJ, presidido então pelo ministro Gilmar Mendes, a formular regras para a autorização judicial às escutas).
            A sua prisão fora decretada no feito em que apurava o crime de quadrilha e foram instaurados mais 3 inquéritos para apurar os furtos qualificados. Nestes, o que mais me prendeu a atenção foi que a prova da materialidade do fato era feita por testemunhas, por vezes um terceirizado que prestava serviço à instituição bancária. O furto, como se sabe. É doutrinariamente classificado como material, ou seja, é daquelas infrações penais em que há um distanciamento lógico e cronológico entre a conduta e o resultado (nessa classificação, ou outros são os formais [também chamados de crimes de consumação antecipada] e os de mera conduta.
            Se qualquer um de nós, mortais, sacar míseros 10 reais de nossa conta corrente num caixa eletrônico, além do recibo referente ao saque, tal operação será infalivelmente registrada no extrato que nos é enviado mensalmente. Quando a polícia solicitava ao banco informação sobre o quanto havia sido subtraído do caixa eletrônico, a instituição enviava um seu representante, geralmente “encarregado da segurança”, que, em depoimento, afirmava que havia sido levada a quantia de R$61.542,00. Não era apresentado um documento sequer a demonstrar a quantia do prejuízo, e, pois, a materialidade do delito.
            Num dos primeiros processos que foram julgados, o magistrado absolveu o suposto ladrão – o mesmo que eu defendia – exatamente com este fundamento: ausência de prova da materialidade do furto qualificado. Por motivos que não vêm ao caso, renunciei e não pude saber se nos outros processos a solução foi a mesma, que, a meu ver, era a correta no caso.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Câmeras corporais

A adoção da utilização de câmeras corporais por policiais militares gerou – e gera – alguma controvérsia no estado de São Paulo, tendo sido feita uma sugestão que mais lembra um pronunciamento de Eremildo, o Idiota (personagem criado por Elio Gaspari): “os soldados da força policial usariam as câmeras, mas as ligariam apenas quanto quisessem”. Essa tola sugestão tem como raiz o seguinte: nas operações em que pode haver alguma complicação para o policial ele não aciona a câmera; mas demais, sim. Apenas a título informativo, muitos países do mundo tem adotado essa prática: em algumas cidades, como, por exemplo, nos Estados Unidos, até os policiais que não trajam fardas estão utilizando esses aparatos. Mas, a meu ver, o debate tem sido desfocado, ou seja, não se tem em vista a real finalidade da câmera, que é a segurança na aplicação da lei penal, servindo também para proteger o próprio agente da segurança pública (tendo exercido, enquanto Procurador do Estado, a atividade de Defensor...

A memória

A BBC publicou tempos atrás um interessante artigo cujo título é o seguinte: “O que aconteceria se pudéssemos lembrar de tudo” e “lembrar de tudo” diz com a memória. Este tema – a memória- desde sempre foi – e continua sendo – objeto de incontáveis abordagens e continua sendo fascinante. O artigo, como não poderia deixar de ser, cita um conto daquele que foi o maior contista de todos os tempos, o argentino Jorge Luis Borges, denominado “Funes, o memorioso”, escrito em 1942. Esse escritor, sempre lembrado como um dos injustiçados pela academia sueca por não tê-lo agraciado com um Prêmio Nobel e Literatura, era, ele mesmo, dotado de uma memória prodigiosa, tendo aprendido línguas estrangeiras ainda na infância. Voltando memorioso Funes, cujo primeiro nome era Irineo, ele sofreu uma queda de um cavalo e ficou tetraplégico, mas a perda dos movimentos dos membros fez com que a sua memória se abrisse e ele passasse a se lembrar de tudo quanto tivesse visto, ou mesmo (suponho) imaginado...

Legítima defesa de terceiro

Um dos temas pouco abordados pelos doutrinadores brasileiros é o da legítima defesa de terceiro; os penalistas dedicam a ele uma poucas páginas, quando muito. Essa causa de exclusão da ilicitude vem definida no artigo 25 do Código Penal: “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Nessa definição estão contidos os elementos da causa de exclusão em questão: uso moderado dos meios necessários; existência de agressão atual ou iminente; a direito seu ou de outrem. Como se observa facilmente, a defesa é um repulsa a uma agressão, ou seja, é uma reação a uma agressão, atual (que está acontecendo) ou iminente (que está para acontecer). Trata-se, a causa de exclusão em questão, de uma faculdade que o Estado põe à disposição da pessoa de defender-se pois em caso contrário a atuação estatal na proteção dos cidadãos tornar-se-ia inútil. Não é uma obrigação, é uma faculdade. Caso, na...