Qualquer
pessoa da minha faixa etária teve em sua infância a mente habitada por seres
reais e imaginários – muitos destes fruto da fantasia. Mas nos tempos atuais
talvez isso tenha mudado, pois os seres que habitam a infância são os
personagens de jogos eletrônicos, existentes aos montes. Na minha infância – e
já se vão longos mais de 50 anos -, e, portanto, na infância das pessoas da
mesma faixa etária, os personagens que nos assustavam ou nos deleitavam
eram de carne e osso ou de pura ficção.
Nasci
e morei até quase os 16 anos numa cidade pequena: Jaú. Além dos seres irreais,
que nos provocavam medo, havia os seres reais cercados de mistério e indagação.
Causava-nos medo, por exemplo, a ideia de encontrar um lobisomem ao voltar para
casa tarde da noite – por volta de 10 horas, especialmente se fosse numa
sexta-feira, dia em que a pessoa se transformava no ser mitológico. Um amigo
afirmava que um seu amigo havia visto um lobisomem no galinheiro de sua casa.
Outro, que tinha vindo da zona rural, dizia que todas as noites, antes de
dormir, como se fosse uma oração, tinha que pedir à “pisadeira” que desse três
voltas no mar até o dia clarear. Descobri, tempos depois, por intermédio de
minha avó materna, que havia morado num sítio, que a “pisadeira” na verdade era
o pesadelo: a pessoa orava para que o pesadelo não a atormentasse durante o
sono - ou seja, não importunasse durante o sono (ela gastaria bem mais do que as 8 horas de sono para "dar 3 voltas no mar"). Se fosse atirada uma peneira num rodamoinho seria capturado o gorro
vermelho do Saci: nunca tive a oportunidade de ter em mãos uma peneira ao presenciar um rodamoinho, embora tenha visto incontáveis, para
tentar capturar o gorro.
Na
cidade havia também os seres reais, de carne e osso, que nos incutiam medo ou
respeito. Um deles era chamado de “Criolando” (creio que o seu nome fosse
Coriolano) e, embora adulto, estava sempre montado num cavalinho de pau (sim,
aqueles feitos com cabo de vassoura – se bem que o dele fosse mais caprichado),
transitando pelas ruas da cidade. Afirmava-se que ele tinha um sexto sentido
que o fazia pressentir a morte das pessoas e, tão logo recebia a notícia,
dirigia-se à casa do falecido, por vezes chegando antes de que a família
tivesse recebido a triste novidade. E, nessa época, os velórios eram feitos na
residência da pessoa morta e o féretro percorria toda a cidade a pé até o
cemitério. Não sei se era folclore, e nem consegui confirmar, pois ninguém da
minha família faleceu e recebeu a visita do “Criolando”.
“Niba
louco” era outro dos personagens e este metia medo nas pessoas. Com evidentes
problemas mentais – daí o epíteto “louco”-, estava sempre vestindo bermuda,
confeccionada por alguém de sua família, camisa e descalço. O seu nome era Aníbal.
Ao vê-lo, infalivelmente as pessoas mudavam de calçada, numa atitude que, de
certa forma, é exposta por Michel Foucault (“História da loucura”): o louco nos
mete medo; os portadores de outras moléstias, compaixão. Uma ocasião, quando eu
cursava o primário no GE Dr. Lopes Rodrigues,
ele começou a “malhar” o portão, que era de madeira e de duas partes, até quase
arrancar uma das partes. Os alunos, entre os quais eu, ficamos em pânico.
Aos
16 vim para Campinas e aqui encontrei seres de carne e osso – pessoas – tais
quais havia em Jaú. Uma delas era o “Mané fala ó”. Os campineiros costumavam
saudar-se dizendo “ó” e não “oi” e o Mané cumprimentava dessa forma as moças.
Ele subia no estribo do bonde e ia andando e cumprimentando e a moça que não o
conhecesse e não respondesse, ele ficava insistindo, o que fazia com que muitas
ficassem assustadas. Bastava responder com um “ó” para que ele sossegasse.
Outra era a “Gilda louca”: ficava no centro da cidade vestindo um faixa escrita
“miss Campinas” e ela acreditava que fosse.
Esses
seres estão em franco processo de extinção, substituídos que estão sendo por
seres virtuais, existentes em jogos eletrônicos. E nem há mais tempo para
encetar campanhas de preservação.
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