Quando
o projeto de lei que permite que seja escrita a biografia de qualquer pessoa
sem autorização do biografado ou de seus familiares foi posto em pauta para
votação e tudo indicava que seria aprovado, surgiu uma tal Associação Procure
Saber que se posicionou frontalmente contra. Dessa associação faziam parte
Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros, avultando Paula Lavigne, como, por assim
dizer, sua gestora – ou gerente, se preferirem.
Diversas
razões foram apresentadas para que fosse exigida autorização do biografado ou
de seus herdeiros, indo desde o direito à privacidade até a questão financeira
(foi dito que o biógrafo “ganha dinheiro” com a venda do livro...). Tomando o
bonde atrasado, Roberto Carlos pediu um tempo à Rede Globo e uma
mini-entrevista sua foi veiculada no programa Fantástico. Óbvio que a emissora
lhe cederia o horário: por ela, ela ainda é o rei. Procurou temperar a sua
posição, ele que é adepto feroz da proibição de que escrevem a seu respeito. Há
uma biografia sua que foi censurada.
O
embate é interessante: privacidade versus liberdade de imprensa. A Constituição
da República Federativa do Brasil garante às pessoas a privacidade e a ninguém
é dado o direito de bisbilhotar a vida alheia. Mesmo as pessoas "públicas", as que se expõem diariamente ao público, têm direito à privacidade. Ocorre que, em face da notoriedade, elas se tornaram públicas e tiveram a sua vida exposta.
Debate
interessante e que se aproxima do tema foi vivido na Alemanha quando se
pretendeu, tempos atrás, instalar câmeras de segurança em locais públicos.
Alguns se insurgiram e se opuseram à pretensão, afirmando que essa providência
violava o direito das pessoas à privacidade. Claus Roxin escreveu um artigo em
que, em resumo, afirma que quem sai a público pode ser visto – e pelo maior
número de pessoas. Esse pensamento é semelhante ao de Hanna Arendt: para esta
filósofa, “o termo ‘público’ denota dois fenômenos intimamente correlatos, mas
não perfeitamente idênticos. Significa, em primeiro lugar, que tudo o que vem a
público pode ser visto e ouvido por todos e tem a maior divulgação possível”
(“A condição humana, página 59).
Quando
se escreve uma biografia, a escolha recai sobre pessoas que tiveram uma intensa
vida pública – ou seja, que foram vistas e ouvidas por um número imenso de
pessoas. Aliás, muitos biografados gostaram muito de ser pessoas públicas,
assediadas – no bom sentido – por centenas, quiçá milhares de fãs. Gostaram
também de receber dinheiro cujo ganho era proporcionado justamente pelo fato de
ser pessoa pública.
Todas
as pessoas “públicas”, seja em que ramo de atividade atuaram, ajudaram de
alguma forma na construção da história e devem ter as suas vidas esmiuçadas
para que todos conheçam todas as ocorrências que viveram. É o caso de alguns dos compositores e cantores que participam da associação. Escreveram belas canções durante a ditadura, um deles com pseudônimo para burlar a censura (sim, as músicas eram submetidas a censura prévia), participaram de movimentos musicais e de festivais; um deles exilou-se na Inglaterra. Auxiliaram na construção histórica do país. São pessoas públicas, portanto.
É
dispensável a autorização para que seja escrita uma biografia: caso ela seja
ofensiva à pessoa ou à sua memória, há os meios legais e jurídicos para que o
autor responda a título de danos morais. Não se pode proibir “a priori” uma
obra de ser publicada porque ela fala da vida de uma pessoa pública. Já li biografias de pessoas cuja vida vale a pena conhecer: Jobs, sobre o criador da Apple, escrita por Walter Isaacson (que escreveu também sobre Thomas Jefferson e Einstein); A estrela solitária, sobre Garrincha (escrita por Ruy Castro); Chatô, o rei do Brasil (escrita por Fernando Morais) e outras. A sobre Garrincha teve uma longa disputa judicial entre a editora e os herdeiros do "Mané".
A
meu ver, os participantes da Associação Procure Saber, excetuando-se Paula
Lavigne, deveriam, quando muito, ter publicado um songbook, como já têm Chico
Buarque e Gilberto Gil. De minha parte, não tenho o menor interesse em saber
detalhes da vida deles, menos ainda da vida de Paula Lavigne. Eles ficarão
melhor em reportagens de CARAS, Contigo e outras do gênero.
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