Pular para o conteúdo principal

Doloso ou culposo?




      No estudo do crime e de seus componentes (elementos, para alguns; características, para outros), a doutrina mundial tem constantemente evoluído; ou se aperfeiçoado, se preferirem. Demonstração desse contínuo desenvolvimento é o estudo sobre o dolo e a culpa. Nas priscas eras, para que se punisse – e com castigos atrozes – alguém que houvesse praticado um resultado danoso bastava o aspecto objetivo da ocorrência: não se inquiria se aquela pessoa tinha ou não querido a prática do ato.
      Vagarosamente, foi se exigindo para a imposição de punição que o autor do fato o tivesse querido – ou pelo menos não tivesse agido de forma tão estouvada que o tenha praticado sem querer. Nascia assim o dolo e a culpa[1], inicialmente como a própria culpabilidade, depois como seus componentes; posteriormente, com o advento das ideias de Hans Welzel, passando a fazer parte da própria ação e não mais da culpabilidade. Há teorias que explicam o dolo, como teorias que explicam a culpa.
      No Direito Penal brasileiro o dolo e a culpa estão no artigo 18, incisos I e II; o inciso I descreve o que é o crime doloso: “quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”; o II, a culpa: ‘quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia”. Na primeira parte do inciso I está o dolo direto (“quis o resultado”); na segunda, o dolo eventual (“assumiu o risco de produzi-lo”). No II, as modalidades de culpa.
      O dolo direto é de fácil entendimento: a vontade do sujeito ativo compreende escolher os meios, utiliza-los e alcançar o resultado. A quer matar B: escolhe o meio (faca), encontra-o e desfere as facadas, ocasionando a sua morte. No dolo eventual a situação é um pouco diversa e o exemplo dos manuais, no qual farei uma pequena atualização, é o seguinte: A está caçando; vê o animal que pretende abater; ao mirar, vê que na linha de tiro está um sem-terra[2]; se não acertar o animal poderá matar o sem-terra; “dá de ombros”, e em total desprezo[3] pela vida daquela pessoa, atira, assumindo o risco de produzir o resultado – no caso, a morte.    Prima-irmã (por assim dizer) do dolo eventual é a culpa consciente, em que, no mesmo exemplo, o caçador, confiando em sua habilidade como atirador, firmemente crê que o projétil atingirá o animal e nunca a pessoa. De qualquer forma, é de se ressaltar que o caçador não estava no campo para matar um sem-terra e sim para abater um animal.
      As pessoas leigas sempre se fazem uma pergunta: como se provará se é dolo eventual ou culpa consciente? Embora essa questão não diga respeito ao Direito Penal e sim ao Direito Processual Penal, a resposta é simplista: por todos os meios de prova em Direito admitidas (modernamente: lícitas). Ninguém melhor do que o sujeito ativo (no processo, réu) para dizer o que pretendia, porém há alguns entraves: ele pode exercer o direito de permanecer em silêncio ou mesmo mentir (Nelson Hungria disse, há mais de 50 anos, que o “direito de defesa compreende o direito de mentir”). Não há como “entrar” na mente do agente para pesquisar o que ele pretendia. Ademais, ainda hoje se disputa em que consiste o interrogatório: meio de prova ou direito de defesa. Abandonando estas questões, os dados externos ao sujeito ativo ajudarão a “decifrar” a sua intenção: fotos, filmagens, testemunhos, perícias, frases que ele disse, tudo o que puder ser compreendido no conceito de prova.
      No caso da morte do cinegrafista, em que a mídia noticia que ambos os “black blocs” serão indiciados por homicídio doloso (com dolo eventual), a meu ver o fato preenche mais as características de um crime culposo e nem com culpa consciente e sim inconsciente: o artefato mortal foi aceso e jogado no chão e não no meio da multidão. Era previsível (conteúdo da culpa inconsciente e da consciente) que ele pudesse atingir alguém? Sim, claro, pois ali havia um aglomerado de pessoas. Se atingisse, mataria a pessoa? Dificilmente. Ao acendê-lo e pô-lo no chão, o sujeito ativo agiu com total imprudência, pois, como já dito, ele poderia atingir alguém, porém ele nunca assumiu o risco de que alguém fosse atingido e a morte fosse o resultado dessa conduta. Tal qual no clássico exemplo da doutrina penal brasileira, os rapazes não estavam ali para matar o cinegrafista, nem assumiram o risco de que ele fosse atingido pelo petardo e morresse - eles apenas foram tremendamente imprudentes e ocasionaram a sua morte.
      Como o sistema precisa de alguns “eleitos” para punir e servir de lição aos demais e para atingir o seu objetivo vale até deturpar a aplicação da lei penal, o cardápio está pronto: os dois deverão ser punidos como autores (no sentido amplo) de um dos mais graves crimes, o homicídio (e de quebra, pelo de explosão em concurso material – outro absurdo do qual não falarei agora).
      Que ninguém – pelo menos, as pessoas civilizadas – aceita a conduta desses “inocentes úteis” (porque são recrutados entre a população pobre para servir de "massa de manobra" de partidos políticos e organizações outras) travestidos de “black blocs” (faltou originalidade até nisso – copiaram do exterior) tupiniquins é uma certeza; mas daí a enxergar um crime doloso na morte do cinegrafista vai uma distância infinita.




[1] . O tema é extensíssimo e não cabe ser abordado num texto tão simples quanto este.
[2] . Na doutrina, é um lavrador.
[3] . Dizendo: “que se dane”.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A assessora exonerade

Um fato tomou a atenção de muitos a partir de domingo quando uma assessora “especial” do Ministério da Integração Racial ofendeu a torcida do São Paulo Futebol Clube e os paulistas em geral. Um breve resumo para quem não acompanhou a ocorrência: a final da Copa do Brasil seria – como foi – no Morumbi, em São Paulo. A Ministra da Integração Racial requisitou um jato da FAB para vir à capital na data do jogo, um domingo, a título de assinar um protocolo de intenções (ou coisa que o valha) sobre o combate ao racismo (há algum tempo escrevi um texto sobre o racismo nos estádios de futebol). Como se sabe, as repartições públicas não funcionam aos domingos, mas, enfim, foi decisão da ministra (confessadamente flamenguista). Acompanhando-a veio uma assessora especial de nome Marcelle Decothé da Silva (também flamenguista). Talvez a versão seja verdadeira – a assinatura do protocolo contra o racismo – pois é de todos sabido que há uma crescente preocupação com o racismo nos estádios de fu

Por dentro dos presídios – Cadeia do São Bernardo

      Tão logo formado em Ciências Jurídicas e Sociais e tendo obtido a inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil, prestei auxílio num projeto que estava sendo desenvolvido junto à Cadeia Pública de Campinas (esta unidade localizava-se na avenida João Batista Morato do Canto, n° 100, bairro São Bernardo – por sua localização, era apelidada “cadeião do São Bernardo”) pelo Juiz de Direito da 2ª Vara Criminal (que cumulava a função de Corregedor da Polícia e dos Presídios), Roberto Telles Sampaio: era o ano de 1977. Segundo esse projeto, um casal “adotava” uma cela (no jargão carcerário, “xadrez”) e a provia de algumas necessidades mínimas, tais como, fornecimento de pasta de dentes e sabonetes. Aos sábados, defronte à catedral metropolitana de Campinas, era realizada uma feira de artesanato dos objetos fabricados pelos detentos. Uma das experiências foi uma forma de “saída temporária”.       Antes da inauguração, feita com pompa e circunstância, os presos provisórios eram “aco

Matando por amor

Ambas as envolvidas (na verdade eram três: havia um homem no enredo) eram prostitutas, ou seja, mercadejavam – era assim que se dizia antigamente – o próprio corpo, usando-o como fonte de renda. Exerciam “a mais antiga profissão do mundo” (embora não regulamentada até hoje) na zona do meretrício [1] no bairro Jardim Itatinga.             Logo que a minha família veio de mudança para Campinas, o que se deu no ano de 1964, a prostituição era exercida no bairro Taquaral, bem próximo da lagoa com o mesmo nome. Campinas praticamente terminava ali e o entorno da lagoa não era ainda urbanizado. As casas em que era praticada a prostituição, com a chegada de casas de família, foram obrigadas a imitar o bairro vermelho de Amsterdã:   colocar uma luz vermelha logo na entrada da casa para avisar que ali era um prostíbulo. Com a construção de mais casas, digamos, de família,   naquele bairro, houve uma tentativa de transferir os prostíbulos para outro bairro que se formava, mais adiante