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Gilmar Mendes, Suplicy e o pagamento da multa



  
      Os “mensaleiros” a quem foram impostas pesadas penas pecuniárias – multas – na Ação Penal 470 – “mensalão” -,  criaram “sites” (lógico que por interpostas pessoas), baseados no Exterior, para o recebimento de contribuições a fim de que o débito fosse saldado, sem que saísse um centavos de seus bolsos. Essa atitude gerou estranheza – ao que se sabe, nunca dantes ocorrera tal no Direito brasileiro -, e levou algumas autoridades a questionar a lisura de tal procedimento, falando algumas em “lavagem de dinheiro”.
      O senador petista Eduardo Suplicy abespinhou-se e enviou correspondência a uma dessas autoridades, o ministro do STF, que ativamente participou do julgamento da ação penal, Gilmar Mendes, questionando-o acerca de suas afirmações. O ministro prontamente respondeu e, de forma irônica, teceu alguns comentários sobre a “cobrança” suplicyana. Numa das passagens, a resposta do ministro faz alusão a um dos princípios mais caros ao Direito Penal, o princípio da personalidade da responsabilidade criminal, que deixou, em 1988, simplesmente de ser princípio e passou a ser lei, na estarua de lei constitucional.
      O artigo 5°, inciso XLV, da Constituição da República Federativa do Brasil[1] alberga o princípio e tem o seguinte teor: “nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens, ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido”. Não se pode, aqui, deixar de registrar que o artigo 5° ocupa o Título II – “dos direitos e garantias fundamentais” -, Capítulo I – “dos direitos e deveres individuais e coletivos” - da “lei maior”. Pelo disposto na primeira parte do artigo, fica proibido que a pena ultrapasse a pessoa do condenado, vale dizer, da pessoa (humana) que praticou uma conduta que se amolda a um tipo penal – um crime -, e que, em virtude dessa conduta, foi processada, sendo a ela garantida a ampla defesa e o contraditório, culminando com a sua condenação com trânsito em julgado[2].
      Alguns crimes têm cominada somente a pena privativa de liberdade (reclusão, detenção): homicídio, aborto; outros, pena privativa de liberdade cumulativamente com a pena pecuniária (multa): furto, roubo, extorsão; outros ainda, pena pecuniária alternativamente à pena privativa de liberdade (calúnia, difamação). Excepcionalmente, a pena privativa de liberdade pode (o Supremo Tribunal Federal não tem uma posição firme sobre o tema) ser executada antes do trânsito em julgado da sentença condenatória: são aqueles casos em que o acusado esteve preso durante o processo (ainda que se afirme que não se trata de execução antecipada, induvidoso é que ele poderá valer-se da detração – artigo 42 do Código Penal).
      Fica mais fácil entender o princípio constitucional em questão olhando-se para a História do Brasil, em que Joaquim José da Silva Xavier, o alferes “Tiradentes”, foi condenado e os seus descendentes declarados infames até determinada geração. Aliás, durante um período da História era hábito (costume?) as legislações preverem que os descendentes do condenado fossem “amaldiçoados” até uma determinada geração, por exemplo, até a terceira geração. Embora não tivessem sequer nascido e, portanto, não cometido nenhum delito, já eram atingidos por uma pena referente a um crime cometido por outra pessoa, um antepassado. Ainda hoje alguns países desrespeitam esse princípio: em caso de terrorismo, a casa que habitava o acusado é destruída, prejudicando os seus parentes que se veem desprovidos de teto.
      Uma definição de pena, aqui parcialmente retratada, dizia que ela "era o sofrimento imposto pelo Estado...". Outra pessoa pagar a multa de um condenado não é uma atitude anormal[3], pois o que o dispositivo da carta magna proíbe é que outra pessoa seja obrigada a pagar a multa. Porém, pessoas saldando o débito representado pela multa fazem com os "mensaleiros" não sofram ("no bolso"), desvirtuando uma das finalidades da pena; ademais, o que é anormal é a pressa com que isso tem sido feito, sem que se saiba de onde o “ervanário”[4] procede.



[1] . Nos dizeres do presidente da Assembleia Constituinte, Ulysses Guimarães, “constituição-cidadã”.
[2] . Artigo 5°, inciso LVII: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
[3] . Quando atuava na Assistência Judiciária, defendendo criminalmente pessoas pobres, vi incontáveis vezes parentes, quiçá vizinhos, fazendo “vaquinha” para o pagamento da pena de multa.
[4] . Expressão de Elio Gaspari.

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