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O lobo e o cordeiro




          A carta enviada à Secretaria da Justiça tinha como remetente um preso da Penitenciária I de Hortolândia e pedia que fosse revisto o processo em que fora condenado. Essa atividade era e ainda é comum: o preso envia carta a alguma repartição ou autoridade reclamando da sua condenação e pede alguma providência. Como ele cumpria pena nesta região, a carta foi encaminhada à Assistência Judiciária de Campinas. Coube a mim analisá-la e adotar as providências que fossem cabíveis.
          Pelas buscas, constatei que a sentença condenatória fora proferida em processo da 2ª Vara Criminal. A pena 2 anos e 8 meses de reclusão pela prática de um crime de roubo agravado pelo concurso de pessoas[1] tentado. Fui ler o processo.
          Ele e outra pessoa abordaram a vítima e, mediante ameaça, despojaram-na de alguns bens irrisórios. Quando deixavam o local, foram surpreendidos por policiais militares e ele foi preso; o outro fugiu. Levado à delegacia, foi lavrado o auto de prisão em flagrante delito e ele foi encarcerado.
          Durante o processo, na audiência em que foram ouvidas a vítima e as testemunhas de acusação, ele comportou-se de forma completamente inadequada, tendo sido necessário que o Juiz de Direito o advertisse, registrando tudo isso na decisão condenatória. Segundo a expressão constante na sentença, ele havia “arrepiado” na audiência, ameaçando a vítima e as testemunhas. Foi necessário que, além de advertido, ele fosse retirado da sala.
          Cabia uma revisão (criminal) ao Tribunal de Alçada Criminal pelo menos para que a pena fosse diminuída[2] e eu elaborei-a, tendo ido depois ao presídio colher a assinatura do preso. Aguardando no parlatório, imaginei que fosse apresentar-se perante mim um lobo, aquele mesmo lobo feroz que havia “arrepiado” na audiência. Materializou-se na minha frente um cordeiro, uniformizado, que a todas perguntas que eu fazia respondia acompanhada da expressão “senhor”: “Sim, senhor”; “não, senhor”. O cárcere já havia dominado aquele lobo, tornando-o um cordeiro.
          O pior é que, conforme Augusto Thompson já registrou em obra antiga, muitas vezes a pessoa age como cordeiro apenas enquanto está cumprindo a pena privativa de liberdade, sendo, portanto, aquilo apenas uma pele: o lobo assumirá a sua forma anterior tão logo alcance a liberdade.
          Ele assinou o pedido de revisão, encaminhei-o ao Tribunal e, atendendo ao meu requerimento, a pena foi diminuída: ele deixou o cárcere antes do que imaginava. Não sei se a forma antiga foi retomada.
(Capítulo do livro "Casos de júri e outros casos", Editora Millennium.)


[1] . Artigo 157, § 2°, inciso II, do Código Penal. A pena cominada ao roubo simples é de 4 a 10 anos de reclusão, mais multa; se houver uma causa de aumento, como, por exemplo, o concurso de pessoas, a pena é aumentada entre 1/3 até ½.
[2] . A diminuição no caso de tentativa é entre 1/3 e 2/3 e o juiz havia diminuído de metade. Cabia a redução de 2/3, pois o “iter criminis” percorrido fora muito pequeno.

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