Pular para o conteúdo principal

O barbeiro e a "pedofilia"


 
            Alguns metros acima do prédio em que fica o meu escritório, na mesma calçada, na avenida Francisco Glicério logo após a avenida Aquidabã, foi instalado um salão de barbeiro, em que o dono era também o único que ali trabalhava. Labutava desde as 7 da manhã até por volta de 8 da noite. Talvez pela comodidade, comecei a frequentar o salão e gostei do trabalho do profissional.
            O barbeiro era (é, ainda, pois está vivo) mineiro, com aquele sotaque característico e gostava de conversar, como, aliás, todos os barbeiros. São os melhores profissionais para bater papo, igualando-se aos taxistas e aos porteiros de prédios (comerciais ou residenciais: estes sabem tudo das pessoas que ocupam esses edifícios...).
            Uma vez, enquanto cortava os meus cabelos, ele contou-me a seguinte estória: numa das noites anteriores, quando atendia um freguês, duas meninas “invadiram” o seu local de trabalho pedindo para que ele deixasse que elas ali se escondessem. Ele perguntou o motivo. Elas contaram: estavam se prostituindo na avenida Aquidabã (conhecidíssimo ponto de prostituição feminina e masculina) quando foram atacadas por alguns travestis que, incomodados pela "concorrência", pretenderam agredi-las. Elas, que eram três, fugiram: uma entrou num hotel ali na mesma avenida Francisco Glicério e as outras duas foram ao salão do barbeiro. Os travestis foram procurar pedras para atirar contra os vidros da fachada do hotel. O gerente chamou a polícia.
            O barbeiro perguntou a idade delas e uma respondeu: 13 anos. Ele disse: por que você está fazendo isso (prostituindo-se), você não tem nem pelos nas axilas (em seu linguajar, deve ter dito "no sovaco"). Ela levantou a minissaia e (estava “desapetrechada”, como dizia o coronel Odorico Paraguaçu) mostrou-lhe a genitália e respondeu: “debaixo do braço não tenho mesmo, mas olha aqui, ó...”.
            Esse fato ocorreu logo depois da sanção da lei nº 12.015/09, que alterou o Código Penal em seu Título VI – Crimes contra os costumes -, passando a chamar os delitos ali definidos de “crimes contra a dignidade sexual”, e criou a figura do “estupro de vulnerável”, artigo 217-A, que nada mais é do que uma espécie de crime sexual em que havia a presunção de violência. Depois que ele contou a história, refleti acerca do seguinte: um homem à procura de um “programa” sexual vai à avenida Aquidabã e “contrata” os serviços de uma dessas meninas, pagando-lhe alguns trocados. É apanhado em flagrante: ficará sujeito a uma pena mínima de 8 anos de reclusão no regime inicialmente fechado. Crime hediondo, ademais. A mídia abrirá manchete chamando-o de “pedófilo”.
            Fiquei pensando se uma pessoa que se propõe a pagar por sexo perguntará a uma menina que está num conhecido ponto de prostituição se oferecendo qual a idade dela: se o fizer, poderá receber como resposta uma mentira. Se não acreditar na resposta, será que ele pedirá àquela pessoa documento de identidade para saber exatamente a idade? É óbvio que não.
            Essa é a política governamental nesse tema: criminalizar a conduta. Agindo assim, os governos, federal e estadual, gastarão menos, muito menos, do que implantar políticas públicas tendentes a retirar essas meninas da rua, ou, melhor, políticas para prevenir que elas vão às ruas prostituir-se. O federal gastará menos do que o estadual, pois a este caberá, por seu Poder Judiciário, julgar o acusado; se condenado, caberá também a ele todas as despesas de manutenção do preso.
            Esta é mais uma situação em que o Direito Penal não é utilizado como, da forma que querem os doutrinadores, “ultima ratio” (em vernáculo: última razão).  É o Direito Penal sendo utilizado em lugar de políticas públicas.


Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

A assessora exonerade

Um fato tomou a atenção de muitos a partir de domingo quando uma assessora “especial” do Ministério da Integração Racial ofendeu a torcida do São Paulo Futebol Clube e os paulistas em geral. Um breve resumo para quem não acompanhou a ocorrência: a final da Copa do Brasil seria – como foi – no Morumbi, em São Paulo. A Ministra da Integração Racial requisitou um jato da FAB para vir à capital na data do jogo, um domingo, a título de assinar um protocolo de intenções (ou coisa que o valha) sobre o combate ao racismo (há algum tempo escrevi um texto sobre o racismo nos estádios de futebol). Como se sabe, as repartições públicas não funcionam aos domingos, mas, enfim, foi decisão da ministra (confessadamente flamenguista). Acompanhando-a veio uma assessora especial de nome Marcelle Decothé da Silva (também flamenguista). Talvez a versão seja verdadeira – a assinatura do protocolo contra o racismo – pois é de todos sabido que há uma crescente preocupação com o racismo nos estádios de fu

Por dentro dos presídios – Cadeia do São Bernardo

      Tão logo formado em Ciências Jurídicas e Sociais e tendo obtido a inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil, prestei auxílio num projeto que estava sendo desenvolvido junto à Cadeia Pública de Campinas (esta unidade localizava-se na avenida João Batista Morato do Canto, n° 100, bairro São Bernardo – por sua localização, era apelidada “cadeião do São Bernardo”) pelo Juiz de Direito da 2ª Vara Criminal (que cumulava a função de Corregedor da Polícia e dos Presídios), Roberto Telles Sampaio: era o ano de 1977. Segundo esse projeto, um casal “adotava” uma cela (no jargão carcerário, “xadrez”) e a provia de algumas necessidades mínimas, tais como, fornecimento de pasta de dentes e sabonetes. Aos sábados, defronte à catedral metropolitana de Campinas, era realizada uma feira de artesanato dos objetos fabricados pelos detentos. Uma das experiências foi uma forma de “saída temporária”.       Antes da inauguração, feita com pompa e circunstância, os presos provisórios eram “aco

Matando por amor

Ambas as envolvidas (na verdade eram três: havia um homem no enredo) eram prostitutas, ou seja, mercadejavam – era assim que se dizia antigamente – o próprio corpo, usando-o como fonte de renda. Exerciam “a mais antiga profissão do mundo” (embora não regulamentada até hoje) na zona do meretrício [1] no bairro Jardim Itatinga.             Logo que a minha família veio de mudança para Campinas, o que se deu no ano de 1964, a prostituição era exercida no bairro Taquaral, bem próximo da lagoa com o mesmo nome. Campinas praticamente terminava ali e o entorno da lagoa não era ainda urbanizado. As casas em que era praticada a prostituição, com a chegada de casas de família, foram obrigadas a imitar o bairro vermelho de Amsterdã:   colocar uma luz vermelha logo na entrada da casa para avisar que ali era um prostíbulo. Com a construção de mais casas, digamos, de família,   naquele bairro, houve uma tentativa de transferir os prostíbulos para outro bairro que se formava, mais adiante