Não
deveria dizer “anão”, já que os politicamente chatos, digo, politicamente corretos, prefiram
que se diga “pessoa pequena” (ah! está ficando insuportável esse
“patrulhamento”...), mas ele era um anão, sim.
Há
três mitos curiosos no Brasil: ninguém nunca viu cabeça de bacalhau, alguém com
uma foto da sogra na carteira e enterro de anão. Quanto ao bacalhau, está
explicado: ele já vem salgado e, portanto, sem cabeça. Quanto à foto da sogra,
é porque há muito preconceito contra essa “familiar” que nunca interfere na
vida do casal. Mas quanto ao enterro de anão é óbvio que existe: não é muito
raro vê-los vivos e como tudo o que vive morre... De minha parte, admito que
nunca vi um enterro de um deles.
No
ano de 1995, pela lei 9.099, foram criados os Juizados Especiais Cíveis e
Criminais, antes chamados de Juizados de Pequenas Causas (não, não era ele quem
julgava as causas envolvendo os anões, conforme se poderia pensar...), e não
apenas julgavam as causas cíveis dependendo do valor (e outras condições), bem
como, na área penal, as infrações penais de menor potencial ofensivo, e as
audiências cíveis eram realizadas após as 18 horas, exatamente para que as
pessoas não perdessem dia de trabalho. Não, não dizer que as causas das pessoas pequenas seriam julgadas por esse juizado.
Os
Procuradores do Estado classificados na Assistência Judiciária, não importando
se na área civil ou criminal, eram obrigados a, em regime de plantão,
comparecerem ao fórum e ali ficar, no 5º andar do prédio, à disposição do juízo
para atuar em defesa dos que compareciam desacompanhados de advogados. Eu tinha
por hábito, nos dias em que estava escalado, ir ao fórum antes do início das
audiências para passar no Tribunal do Júri, que ficava no 1º andar, e assistir
a pelo menos uma parte do julgamento que estivesse sendo realizado.
Naquele
fim de tarde, ao entrar no plenário do júri assustei-me: sentado na cadeira do
réu (chamado impropriamente de “banco dos réus”) havia um anão. Os seus pés
(pezinhos?) sequer alcançavam o chão, e a acusação que pesava sobre ele era de
homicídio: ele fora a um bar comprar cerveja e o balconista, querendo “brincar”
com ele (no popular: “gozar com a cara dele”, ou, mais modernamente, "zoar"), respondeu que não era permitida
a venda de bebida alcoólica para “menores” (no tamanho, claro, já que ele era adulto). O "homem pequeno" não gostou do chiste e surgiu uma
discussão e o anão sacou de uma arma de fogo (deduzo que fosse uma arma muito
pequena, compatível com o tamanho de sua mão: uma Beretta talvez?) e matou o atendente. A tese da defesa,
claro, seria homicídio privilegiado.
Durante
um intervalo do julgamento, enquanto todos estavam no corredor, um escrevente que trabalhava no JEC desceu
exatamente para me chamar, pois as audiências no JEC iriam se iniciar, e viu pelas costas
uma pessoa que lhe pareceu ser uma criança e ia, seguindo aquele hábito
brasileiro, passar a mão na cabeça daquela pequena pessoa: imediatamente impedi-o, explicando-lhe que não era uma criança e sim um anão que havia praticado um
crime de morte por conta de uma brincadeira que lhe fizeram. Ele percebeu o risco a que iria se expor (embora, claro, o anão
estivesse desarmado) e assustou-se, agradecendo-me em seguida, a advertência..
O
dever me chamou e não pude acompanhar o julgamento até a decisão dos jurados.
Não
foi um enterro de anão, portanto, mas de alguém que humilhou o anão.
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