Eu havia sido seu professor de Direito Penal no terceiro ano da faculdade, época em que as aulas, seguindo o programa de curso, versam somente sobre a Parte Especial do Código Penal, aquela que descreve os crimes (“em espécie”), tais como o homicídio, o furto, o estupro e a corrupção passiva, e, também, em algumas faculdades, sobre as leis específicas (drogas, meio ambiente, transplante de órgãos, etc).
Depois
de ter colado grau, ele prestou concurso público para o cargo de Promotor de
Justiça em outra unidade da federação e logrou aprovação; permaneceu nesse
cargo por algum tempo e, enquanto isso, submeteu-se ao concurso público de
provas e títulos para o mesmo cargo, porém no estado de São Paulo, obtendo
aprovação. Depois de “perambular” por algumas comarcas pequenas, veio a dar com
os costados em Campinas, exatamente na Vara do Júri que era aquela em que eu
atuava na defesa dos réus “carentes”, aqueles que não podiam arcar com as
despesas de honorários advocatícios.
Digladiamo-nos
num julgamento em plenário em que a vítima fora morta com diversas facadas numa
noite chuvosa numa rua de uma das favelas de Campinas e o resultado foi uma condenação à
pena mínima prevista ao crime pelo qual o réu era julgado – homicídio qualificado
-: 12 anos.
Semanas
após, encontramo-nos novamente no plenário do júri e desta feita tratava-se do
crime de homicídio simples, cuja pena cominada é de 6 a 20 anos de reclusão, na
forma tentada, ou seja, a vítima não morrera, hipótese em que, se condenado o
réu, a pena deverá ser diminuída entre 1/3 e 2/3. A prova contra o acusado era
frágil; ademais, ele atirara na vítima porque esta invadira o seu barraco. As
demais circunstâncias, tal como o porquê da invasão, do crime não ficaram bem
esclarecidas.
O
Promotor falou pelo seu tempo – na época, duas horas -, eu falei pelo meu
tempo, não utilizando porém as duas horas. Ele pediu réplica, em que falaria
por mais uma hora, e, para meu espanto, pediu que os jurados desclassificassem
o crime para homicídio culposo tentado, uma acusação bem menos grave, e, para
enfatizar a sua argumentação, apontou para mim e disse que havia aprendido
aquilo “com o meu professor”. Quase desacordei, e não escapei de uma
taquicardia, nem de tremores nas mãos ante uma afirmativa tão absurda.
Em
primeiro lugar, porque esses temas – crime culposo e crime tentado – fazem
parte do programa das faculdades de direito no primeiro ano, quiçá no segundo,
todavia nunca no terceiro, em que são estudados os crimes, e tanto no primeiro,
quanto no segundo anos ele não fora meu aluno – o professor fora outro (que,
certamente, não lhe ensinaria tal asneira). Em segundo lugar, porque desde longa
data sabe-se em Direito Penal que o crime culposo não admite a tentativa,
apenas o doloso, em que o “iter criminis” se desdobra em atos de cogitação,
atos de preparação e atos de execução, que podem desaguar no crime consumado;
se o sujeito ativo da infração for impedido de prosseguir na execução e alcançar
o resultado, tem-se a figura da tentativa (ou crime tentado, como preferem muitos).
A
título de maldade e fazendo de conta que ele fora meu aluno, tive uma vontade
imensa, quase incontrolável de dizer que ele jamais teria aprendido aquilo
comigo, pois jamais eu ensinaria algo tão equivocado. Além do mais, não fora meu aluno, como já dito, nos dois primeiros anos. Porém, para não criar
celeuma e talvez prejudicar a pessoa que eu defendia, refreei a minha vontade e
quase concordei com ele, o que acabou beneficiando o acusado, que foi condenado
por um crime menos grave.
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