Eles eram três jovens
mal entrados na maioridade penal; todos estudavam, um deles numa universidade
estadual de prestígio internacional. Aproveitando os conhecimentos adquiridos,
para ganhar um pouco de dinheiro ele ministrava aulas num cursinho. Certa noite,
saindo de uma festança regada a muita cerveja (como atualmente é muito comum
nas universidades), ao passarem pela praça do Carmo, resolveram brincar numa
estátua que ali existia, “a dama do café”.
A estátua – não se sabe a que título foi ali construída; aliás, nunca se
sabe nada sobre os monumentos no Brasil, que são poucos; sobre os museus menos
ainda, o que justifica a antiga frase: “o brasileiro não tem memória” (e nem
quer ter, talvez por vergonha...) - se constituía numa mulher sentada num
banco. Um dos rapazes subiu no monumento e sentou-se no colo da estátua; o outro
quis fazer o mesmo; o terceiro imitou os demais. Como no colo da dama cabia
apenas um, iniciou-se um empurra-empurra entre os três jovens, o que provocou a
queda da dama: ela não era chumbada na cadeira. Ficou danificada.
Talvez pelo barulho da
algazarra, alguém acionou a Polícia Militar e os autores da façanha foram
encaminhados ao Plantão Policial e ali elaborado o boletim de ocorrência;
posteriormente, os rapazes foram indiciados. Com os autos de inquérito em mãos,
o membro do Ministério Público denunciou-os pelo crime de dano qualificado[1]. O
processo tramitou pela 4ª Vara Criminal de Campinas. A defesa de um deles foi
feita pela PAJ, a meu cargo, pois eu substituía um colega. A minha tese foi a
de que eles não tiveram a intenção de derrubar (e danificar) a estátua, tudo
resultando de uma brincadeira (de mau gosto, ainda que seja), e como não existe
a forma culposa do crime de dano, eles deveriam ser absolvidos: faltava-lhes a
intenção. Autores há que exigem aquilo que outrora se denominava "dolo específico". Ademais, aleguei que para que o crime de dano se aperfeiçoe é
necessário que o bem fique destruído, inutilizado ou deteriorado, o que não
ocorrera com “a dama do café”. Em vão: ao final eles foram condenados à pena
mínima, 6 meses de detenção, e, como era permitido, o magistrado substituiu a
pena privativa de liberdade por restritiva de direito consistente em prestação
de serviços à comunidade.
Como o delito tinha
acontecido numa praça (ou jardim), o serviço a ser prestado – a sentença assim determinava – à
comunidade consistia em trabalhar para o Departamento de Parques e Jardins da
Prefeitura de Campinas, limpando estátuas. Tal decisão, como é óbvio, afrontava
o princípio da dignidade da pessoa humana, tornando-se pena cruel, conforme se
pode constatar consultando qualquer manual elementar de Direito Penal.
Irresignado, interpus recurso de apelação, mas como eu estava naquele juízo
substituindo um colega, terminou o período de substituição e retornei à Vara do
Júri: não consegui saber se o meu recurso foi julgado procedente.
De qualquer forma, serve
como exemplo de como a punição pode – aliás, deve – ser feita, porém
respeitando o limite ditado pelo princípio da dignidade da pessoa humana.
[1].
Artigo 163 do Código Penal: “destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia”,
com a pena de detenção de 1 a 6 meses, ou multa; se for “II – contra o
patrimônio da União, Estado, Município, empresa concessionária de serviços
públicos ou sociedade de economia mista”, a pena passa a ser de detenção, de 6
meses a 3 anos, e multa. A mídia, sempre equivocadamente, chama esse crime de
“dano ao patrimônio público”; não é: é dano qualificado.
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