Ele tinha o perfil do descartado social: morava numa vila popular,
daquelas construídas pelos governos militares nos anos 60 e 70 e em regra
batizadas com o nome de algum militar: Vila Costa e Silva e Vila Castello Branco,
por exemplo. Não trabalhava e sustentava-se cometendo pequenos furtos em
residências. O seu “modus operandi” era corriqueiro naquela época, anos 80: no
fim de semana, ele e um amigo (comparsa, cúmplice, co-autor, partícipe, seja lá
o nome que se lhe dê) dirigiam-se a outro bairro, geralmente nas proximidades
do Liceu Nossa Senhora Auxiliadora (coincidentemente, o mesmo bairro em que eu
morava – alguns vizinhos receberam a desagradável “visita” desses que outrora
eram espirituosamente chamados de “amigos do alheio") para a prática do ilícito
patrimonial. Perambulavam pelas ruas observando as casas, escolhendo uma que
tivesse o acesso facilitado por ter muro baixo ou ser vizinha de terreno
baldio; tocavam a campainha para certificarem-se de que os moradores estavam
ausentes e, constatada a ausência, um deles escalava o muro, arrombava uma
janela, ganhava o interior do imóvel, dali retirando o que conseguisse carregar, enquanto o outro rapinante permanecia no lado externo, vigiando.
Foram várias subtrações,
mas os nossos caminhos se cruzaram quando ele foi processado sob a acusação de
haver participado de um homicídio qualificado. O autor da morte fora um seu
companheiro de empreitadas delituosas: fora este quem disparara o revólver
contra a vítima. “Mauri” era mero partícipe[1].
A acusação era a
seguinte: dois rapazes no interior de um Fusca pararam para conversar com a
pessoa que “Mauri” acompanhava, de apelido “Morrão”. Este principiou um diálogo com o passageiro do
Fusca; “Mauri” estava do lado do motorista, conversando com este. A conversa entre “Morrão” e o
passageiro transformou-se em discussão; “Morrão” sacou um revólver e disparou
contra o passageiro, errando o alvo. O projétil acertou o motorista, alojando-se
na coluna vertebral[2]. O
veículo moveu-se um pouco. Imobilizou-se. Ambos, “Mauri” e “Morrão”, fugiram.
O conteúdo da conversa
nunca ficou muito claro: indícios apontavam que o passageiro provavelmente
pretendia adquirir droga; outra vertente apontava para a compra de produtos
furtados (o que era mais lógico); outra vertente falava em compra de produtos
de crime anteriormente ocorrida e não paga: "Morrão" fora o vendedor e o passageiro, o comprador. Mas algo era inconteste: fora
“Morrão” o autor do disparo.
Depois de algum tempo
internada – e, se se salvasse, ficaria tetraplégica -, a vítima morreu, por
complicações decorrentes do ferimento (mas que não chegaram a se constituir em
“causa superveniente relativamente independente”), já em pleno andamento do
inquérito policial. Ultimada a instrução, foram ambos pronunciados e designada
data para o julgamento pelos sete jurados. A família da vítima contratou um
advogado para atuar como assistente do Ministério Público (popularmente chamado
de assistente de acusação). O assistente fez prova de que a vítima era uma boa
pessoa, esportista e outros atributos, o que, em matéria de julgamento pelo
Tribunal do Júri, é muito importante: afinal, os jurados julgam também a
vítima.
Por algum motivo que não
vem ao caso expor agora, o julgamento foi desmembrado, tendo sido julgado
“Morrão” em primeiro lugar e ele foi condenado por homicídio qualificado, com
imposição da pena mínima: 12 anos de reclusão.
Foi, então, “Mauri”
levado a julgamento e a todo custo procurei demonstrar em plenário, atuando em sua defesa, aos 7 jurados que a conduta não
podia sequer ser chamada de participação e, para tanto, expus todos os requisitos do concurso de pessoas,
conforme maciçamente expõe a doutrina penal brasileira: a) unidade de fato; b)
pluralidade de condutas; c) relevância
causal de cada uma; d) liame subjetivo. Depois de explicar cada um dos
requisitos, argumentei com os jurados
que não estava presente uma conduta do acusado auxiliano o autor e, assim, concorrendo
para o resultado morte. “Mauri” não praticara nenhuma conduta – afinal a prova
dos autos demonstrava que ficara conversando com a vítima, que, não se pode
esquecer, foi atingida por erro, já que “Morrão” pretendeu acertar o
passageiro. Como tese alternativa, trabalhei com a participação de menor
importância.
Foram em vão os meus
esforços para conseguir a absolvição: os jurados unanimemente
reconheceram que “Mauri” havia de qualquer forma concorrido para o resultado
morte, reconhecendo, todavia, que a sua participação foi de menor importância e
o juiz presidente do Tribunal do Júri, aplicando a regra contida no artigo 29,
§ 1º, do Código Penal[3],
diminuiu de 1/3 a pena de 12 anos (mínima para o homicídio qualificado),
fixando uma pena final de 8 anos.
A condição da vítima de
“bom moço” e os vastos antecedentes de “Mauri” ajudaram na formação da convicção
dos jurados para condenar, estou certo.
(Capítulo do livro "Casos de júri e outros casos", volume 2, a ser editado.)
[1] . Pela teoria que se analise a
conduta de “Mauri”, ele será sempre considerado quando muito participe, ou
seja, uma intervenção acessória na prática do crime contra a vida. Analisando-se
a sua intervenção sob a ótica da teoria do domínio do fato, posta tão em voga
pelo STF no julgamento da AP 470 (“mensalão”), jamais ele poderia ser
considerado autor.
[2] . Este erro é tratado pelo Código
Penal como “erro na execução” (em latim “aberratio ictus”), artigo 73.
[3].
Se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um
sexto a um terço. Embora o verbo seja “poder”, entende a doutrina que se trata
de direito público subjetivo do sujeito ativo, ou seja, a pena deve ser diminuída.
Aqui não cabe dúvida: se os jurados reconhecerem a participação de menor
importância, não poderá o juiz ignorar a decisão dos jurados.
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