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O amásio do travesti


            Num momento mau de sua vida, caracterizado especialmente por estar desempregado, ele resolveu utilizar as suas horas de lazer, que, suponho, eram todas, divertindo-se no Jardim Itatinga, o que é sinônimo de dizer “na zona de prostituição”.        Numa das suas incursões àquela “área de lazer” conheceu um travesti que ali praticava a prostituição e foi amor à primeira vista, pelo menos para o homossexual: tornaram-se amantes.
            O prostituto praticamente passou a sustentar o seu “caso”. O idílio não durou muito tempo, pois o desempregado deixou esta condição ao obter um emprego numa empresa multinacional alemã, percebendo um bom salário. As idas ao prostíbulo começaram a rarear até que cessaram de todo: é que o ex-desempregado havia, além de tudo, iniciado um romance, desta vez com uma mulher. Não respondendo nem aos bilhetes, nem aos telefonemas do travesti, este, enfurecido, enviou uma correspondência à multinacional em que o jovem estava trabalhando relatando com detalhes todo o romance (que, creio, tenha sido tórrido) que tiveram. Não parou nisso: o desesperado amante ameaçava ir à empresa.
            Desesperado, o jovem adquiriu um revólver e foi à casa de prostituição, disposto a atirar no ex-amante. Ao vê-lo entrar na casa armado, o travesti resolveu pôr-se a salvo e foi feito o primeiro disparo: como o jovem não tinha experiência em tiro, errou o alvo porém o projétil atingiu o batente de madeira da porta do quarto e um fragmento de madeira atingiu o travesti, ferindo-o. O jovem fugiu dali. Foi instaurado inquérito e ele foi acusado de homicídio simples tentado[1].  Assumi a sua defesa.
            No dia da audiência de oitiva das testemunhas de acusação, compareceu a vítima – que era afrodescendente – toda maquiada e vestida como mulher, o que lhe valeu “um pito” dado pelo juiz, que o ameaçou que, se viesse vestido (travestido?) daquela forma em outra audiência, seria preso[2]. Felizmente, para ele, não houve outra audiência, que seria a de julgamento em plenário, pois foi operada a desclassificação de homicídio tentado para lesão corporal.




[1] . Poder-se-ia discutir se era tentativa branca ou não, já que o ferimento não foi causado pelo projétil, mas preferi não ir por esta senda.
[2] . Embora a prostituição não seja, há anos, ilícito penal (crime ou contravenção), quem a exercia era processado (e, dependendo, até preso) pela contravenção penal denominada vadiagem. Às vezes, pelo crime de ato obscene: aqueles que, ousadamente, mostravam ao potencial “freguês” o que tinham para oferecer.

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