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O STJ e o crime de desacato




      A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, em decisão inédita e que posteriormente será chamada de “histórica” descriminalizou o crime de desacato. Este delito é classificado como “contra a Administração Pública”, praticado por particular, definido no artigo 331 do Código Penal, cujo teor é o seguinte: “desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela”, com a pena de detenção de 15 dias a 6 meses, e multa. Pela quantidade de pena, é atingido pela Lei 9.099/95, ou seja, é considerado infração penal de menor potencial ofensivo”, o que é dizer que poderá ser feita oferta de imediata imposição de pena restritiva de direito (prestação de serviço à comunidade) e multa, que, se aceita pelo apontado autor do fato, importará no arquivamento do “termo circunstanciado de ocorrência”, o correspectivo do “boletim de ocorrência”.
      O Código Penal é do ano de 1940, fruto de um decreto-lei (parente da medida provisória) da lavra de Getúlio Vargas. É certo que ao longo de todo esse tempo ele sofreu incontáveis modificações (só para citar uma: o crime de organização criminosa), que, na opinião de alguns estudiosos, desfiguraram-no, sendo necessário que seja feito outro código. Foi elaborado um projeto quando o (infelizmente) imortal José Sarney era presidente do Senado Federal, mas, pelo “andar da carruagem”, passarão muitos anos para que seja aprovado – e há o risco de que não seja.
      Para alguns, o crime de desacato era um resquício da ditadura de Vargas, embora o Código Penal, especialmente na Parte Especial, não possa ser acusado de “ditatorial”, pois ele trouxe boas e importantes novidades à legislação brasileira. E não se pode esquecer que sempre um código representa o momento histórico em que ele é elaborado.
      Há muito tempo, uma comissão internacional de juristas, na qual o Brasil se fez representar por Heleno Cláudio Fragoso, examinou a legislação penal dos países latino-americanos e o seu estudo foi publicado sob o título de Sistemas penais e Direitos Humanos na América Latina. Na categoria de delitos cuja descrição legal era muito ampla estava o desacato, pois, como se vê, o verbo “desacatar” não esgota o alcance da descrição, deixando a cargo da interpretação doutrinária esclarecer o seu significado. E a doutrina fazia esse trabalho com muito afinco, atenta à tarefa hercúlea a seu cargo. Por todos, o ministro Nelson Hungria[1], um dos membros – aliás, seu presidente – da comissão que redigiu o código: “a ofensa constitutiva do desacato é qualquer palavra ou ato que redunde em vexame, humilhação, desprestígio ou irreverência ao funcionário”. Tão vaga a interpretação quanto o tipo penal!
      Os compêndios estão repletos de exemplos concretos desse crime: autuado por uma infração de trânsito, o infrator rasgou a multa em pedaços e atirou-os no policial (hoje, seria um “amarelinho”); ao receber a citação com a cópia da denúncia criminal, o réu amassou-as e atirou-as no peito do oficial de justiça. O anedotário jurídico contém exemplos concretos dessa espécie de crime em que foi muito mais atingido o orgulho do funcionário público do que a Administração Pública. Um deles, clássico, está comentado por Heleno Cláudio Fragoso em seu livro Jurisprudência Criminal: durante uma audiência criminal, ao ter uma pergunta sua indeferida o defensor sorriu e o magistrado tomou o ato como um desacato, e por conta disso o causídico foi processado criminalmente. Em outro exemplo, mais recente, abordado por mim numa postagem aqui, o advogado foi processado (porém o STJ determinou o “trancamento” da ação penal) porque aplaudiu o Promotor de Justiça quando este requereu ao Juiz que fosse instaurada investigação para apurar o crime de falso testemunha praticado por testemunha (ver "link" abaixo).
      Na quase totalidade dos casos, o desacata é mais uma grosseria, uma falta de educação, uma falta de urbanidade, uma falta de urbanidade, e, quiçá, crime de lesão corporal ou contravenção de vias de fato do que desacato. Tendo em vista isso, o Superior Tribunal de Justiça, em 15 de dezembro de 2016, por sua 5ª Turma, relator o ministro Ribeiro Dantas, aplicando a Convenção Americana de Direitos Humanos (também conhecida como Pacto de San José, de 1969), decidiu que tal conduta está descriminalizada, passando, portanto, a ser alcançada por outro ramo do Direito e não mais pelo Direito Penal. A não ser, como já dito, que o ato do particular atinja de outra forma a pessoa do funcionário público (integridade corporal, honra), quando, então, poderá ser considerado delito.
http://silvioartur.blogspot.com.br/2013/04/o-riso-o-aplauso-e-o-desacato.html


[1] . Comentários ao Código Penal, volume 9, página 421.

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