“Glorinha”
e “Mel” eram epítetos – ou “nomes de guerra” – de dois travestis que atuavam na
zona do meretrício de Campinas, o famoso Jardim Itatinga. O primeiro (ou
primeira?) era magro, de estatura mediana; enfim, de aparência um pouco frágil.
Já “Mel” era mais encorpado, não chegando, todavia, a ser forte.
Ambos
envolveram-se em uma briga num bar naquele bairro contra dois, por assim dizer,
“usuários” dos serviços ali oferecidos: dois operários da construção civil que
foram ao local em busca de diversão. Dessa escaramuça resultaram ferimentos em
todos, com mais gravidade nos dois operários, num deles muitos sérias as lesões.
Terminada a refrega, passaram por um pronto-socorro, onde foram medicados e
dispensados. Um deles continuou sentindo fortes dores abdominais. Elas foram
aumentando. Levado novamente ao pronto-socorro, era tarde demais: o baço havia
estava rompido, sequela da refrega, e houve infecção generalizada, com a
conseqüente morte – era o que apontava o laudo de exame necroscópico.
Foram
ambos os travestis denunciados por homicídio simples, com pena de 6 a 20 anos
de reclusão, e por lesão corporal simples (ou leves) .
“Mel”
não foi achado (ou achada?), tendo sido chamado por edital, evidentemente não
atendido. Encerrada a instrução, o juiz pronunciou ambos por homicídio simples;
“Mel”, sendo revel, não foi intimado da sentença (o que impede o julgamento
pelo tribunal do júri[1]),
tendo sido desmembrado o processo, indo a julgamento pelos jurados apenas
“Glorinha”.
Uma
surpresa no dia do julgamento: “Glorinha” compareceu, escoltada e algemada, já
que estava presa, com todas as unhas dos dedos das mãos pintadas de um vermelho
vivíssimo. O Juiz que presidiria o julgamento mandou que um funcionário do
cartório fosse comprar um vidro de acetona na farmácia defronte ao fórum para
que o esmalte fosse removido.
Iniciaram-se
os debates: o Promotor de Justiça, querendo adivinhar a tese da defesa, disse
aos jurados que seria alegada a tese da legítima defesa e passou a tentar
demonstrar que ela não teria ocorrido; o acusado não teria legitimamente atuado
em sua defesa; eu não ia trabalhar com essa tese, mas tive uma ideia: gastaria
um pouco do meu tempo (no total, eram 2 horas) para discorrer sobre a legítima defesa,
como se fosse a tese que seria trabalhada em plenário. O Promotor falou durante
as 2 horas então regulamentares[2], gastando
bastante do seu tempo preocupado em demonstrar a inexistência da legítima
defesa. Encerrado o tempo dado à acusação, a palavra foi passada à defesa[3],
pelo prazo de duas horas. Iniciei descrevendo o que é a legítima defesa[4],
quais são os seus requisitos, e me alonguei por uns quarenta minutos no tema.
Em seguida, porém, afirmei: “mas não é esta minha tese”. O Promotor quase caiu
da cadeira. Expliquei aos jurados que a minha tese era negativa de autoria,
pois, perguntei, algum jurado poderia imaginar que um ser frágil como o réu
conseguiria matar, utilizando apenas as próprias mãos, uma pessoa? Conseguiria
romper o baço de uma pessoa apenas com as mãos? Disse isso com ênfase, sempre
apontando para o réu, que, encolhido no banco dos réus (na verdade, uma cadeira),
a tudo assistia, sem praticamente nada entender (como, ao final, admitiu).
Ademais, acrescentei, eram dois os réus (o outro – o estava foragido) e não
havia certeza de qual dos dois havia desferido o golpe que rompeu o baço da
vítima.
Consegui
convencer os jurados, que absolveram “Glorinha” por cinco votos a dois.
“Mel”
foi capturado no ano seguinte e levado a julgamento. Tendo em vista a
absolvição de “Glorinha”, o Promotor que atuou na acusação de “Mel” em
plenário, e que não era o que atuara no julgamento de “Glorinha”, optou por
requerer a sua absolvição.
[1] . Naquela época – década
de 80 – o processo, embora revel o acusado, tinha tramitação normal. Também no
rito do processo por crimes contra a vida foram introduzidas modificações no
ano de 2.008.
[2] . Como
já dito, com a reforma processual penal
de 2.008, o tempo passou a ser de uma hora e meia, com direito a réplica e
tréplica por mais uma hora.
[3] . Um belíssimo livro de
Evandro Lins e Silva, em que ele relata a defesa que fez no caso Doca Street,
tem o nome de “A defesa tem a palavra”, e o autor explica que se inspirou nessa
frase, habitual nos tribunais de júri: “a defesa tem a palavra pelo prazo de
duas horas”. Nesse momento, qualquer defensor estremece.
[4] . Artigo 25 do Código
Penal: “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios
necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de
outrem”.
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