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A morte do prefeito (capítulo 56)

Iniciou-se o 10° volume do processo que apurava a morte do prefeito Toninho com o depoimento que “Jack”[1] prestou ao Delegado de Polícia que passara a presidir o inquérito policial (a apuração, conforme já registrado, houvera, por ordem superior, sido deslocada do SHPP da DIG de Campinas para aquela especializada paulistana, o DHPP). O depoimento foi prestado no dia 2 de setembro de 2002 e somente encaminhado, por ofício, a Campinas no dia 7 de outubro daquele ano.
                        “Jack” era uma figura muito interessante – conversei com ele diversas vezes e em todas essas vezes ele tinha ido à assistência judiciária à minha procura. Tinha idéias bem articuladas e expressava-as bem. Porém, não era muito loquaz.
                        Ele – segundo afirmava – trabalhava como garçom em um bingo localizado na Rua Paula Bueno, no bairro Taquaral. Foi levado ao DHPP pelo Deputado Estadual pelo PT Renato Simões. Em seu longo depoimento ele narra algo que se assemelha a uma conspiração para matar o prefeito e da qual teriam participado pessoas com cargos importantes na administração pública, seja no âmbito estadual, seja no âmbito municipal –, em ambas as esferas, com cargo de Secretário. Em resumo, declarou que entre julho e setembro de 2001 começou a trabalhar no Bingo Taquaral; que, por autorização de “Manoel”, vigia da empresa, pernoitava no local, mais precisamente no salão central, “onde ocorriam os sorteios por meio de cartelas”, pois não havia transporte no horário em que encerrava o seu turno de trabalho (segundo ele, o turno era das 15,00 à 1,30 h); que pernoitou nos dias 3, 4 e 5 de setembro de 2001; que “alguns fatos estranhos chamaram a sua atenção” e que “nessas noites ocorreram algumas reuniões”; a primeira teria ocorrido na madrugada de 4 de setembro e dela participaram o filho do dono do bingo, uma pessoa que era chamada de “Delegado”, outra chamada de “Coronel”, um “português” e seu segurança (que não se manifestou durante do encontro), um secretário municipal e finalmente, comparecendo por último, esteve presente uma pessoa semelhante a um secretário estadual[2]. Nessa reunião houve algumas altercações entre alguns participantes a respeito de um “shopping na região do aeroporto”, em que o “pessoal” do “Português” “havia investido”, bem como da não-privatização da SANASA (“era compromisso de campanha”, disse o secretário municipal)[3]. Na segunda reunião, acontecida na madrugada de 5 de setembro, estiveram presentes as mesmas pessoas, exceto o secretário estadual, e os temas tratados eram os mesmos da primeira. Durante a reunião, o filho do dono do bingo disse aos demais que “também estava perdendo, pois tinha mais um bingo para abrir e outro para construir”[4]. “Delegado” efetuou uma chamada telefônica com o seu aparelho celular e depois de alguns minutos surgiu mais uma pessoa, de nome “André”, e entre todos iniciou-se uma discussão cujo teor o depoente não esclarece: parece que as pessoas comunicavam-se de modo cifrado.
                        Conforme ainda o seu depoimento extrajudicial, ocorreu uma terceira reunião, já na madrugada do dia 6 de setembro, da qual participaram as pessoas que estiveram na primeira, e após o início chegou “Andrezinho”, provocando o seguinte comentário de “Delegado” e “Coronel”: “chegou o Andrezinho do Taquaral”. As discussões são também cifradas, como se as pessoas falassem em código; durante a reunião, compareceu mais uma pessoa, tendo sido chamada de “Secretário” (o que provocou um comentário do “Português”: “bom, agora estão os dois”). Há um diálogo entre “Coronel” e “Andrezinho”, relatado por “Jack”:
            -“André”: como vai ser isso?
            -“Coronel”: isso é o de menos, a perseguição a um carro roubado, uma batida, uma morte, isso acontece direto numa cidade grande.
            -“André”: E?
            -“Delegado”: acabou, o “Andinho” assume a bronca. Talvez o pessoal aqui até te ajude, talvez até lave o teu dinheiro aqui.
                        Segundo a testemunha, o filho do dono do bingo não gostou da última frase de “Delegado”, instaurou-se outra discussão e a reunião foi encerrada.
                        Após o dia 11 de setembro, “Jack”, segundo as suas palavras, demitiu-se do bingo e foi trabalhar em Serra Negra. Ali, na época do carnaval do “corrente ano” (2002), mais “precisamente no sábado”, ele foi procurado por um indivíduo que “se dizia chamar CÉSAR, o qual se apresentou como sendo repórter da ‘EPTV’ de Campinas”. Disse-lhe o repórter: “do mesmo jeito que eu te achei vão te achar”. Dito isto, “Jack” entregou ao repórter um guardanapo em qual estavam escritos feitos por ANDRÉ numa das reuniões. Estavam os nomes: “TAMPINHA”, “PEDRÃO”, “BINHO”, “ILMA” ou “NILZA” e “FABIANO”. O repórter indagou sobre a morte do prefeito e “Jack” respondeu que “não sabia”. Vinte e cinco dias após César telefonou na casa do depoente (que lhe fornecera o número quando conversaram), marcando um encontro, que se deu naquela mesma data. O repórter disse-lhe que aqueles nomes anotados por “Andrezinho do Taquaral” no guardanapo eram todos de traficantes de drogas da região a ele ligados, arrematando o repórter: “ferrou, não tenho cacife para te ajudar”. Depois, César apresentou, dois meses antes do depoimento, a “Jack” “uma pessoa, de nome CONRAD, do Partido dos Trabalhadores, por intermédio de quem chegou até Paulo Roberto da Costa Santos, irmão do prefeito.
                        César existia mesmo e foi procurado durante a fase judicial, porém não foi encontrado. O seu desaparecimento constituiu-se num mistério.





[1]. Codinome posto com base no Provimento 32/00 do CSM de São Paulo.
[2]. Descreve o depoente as características físicas de “Coronel”, “Delegado”, “Português” (“usava um relógio de pulso que aparentava ser de ouro”) e dá os nomes dos secretários estadual e municipal, bem como o do filho do dono do bingo – volume 10, fls. 1.927 e 1.928.
[3]. No final da administração anterior à de “Toninho”, surgiram fortes rumores de que a SANASA seria privatizada – talvez fosse apenas um boato de campanha eleitora, como sói acontecer.
[4]. Lei municipal proibia a abertura de um bingo nas proximidades de outro; depois da morte do prefeito, num caso inédito, a lei foi revogada por um decreto. Quando for comentado o depoimento judicial do ex-Secretário dos Negócios Jurídicos da Prefeitura de Campinas, o assunto será novamente abordado.

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