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Jeremy Bentham, a crise no sistema penitenciário e os “mensaleiros”


      Os sistemas de cumprimento de pena privativa de liberdade – ou sistemas penitenciários - são três e dois deles foram criados nos EUA, em estados limítrofes. O filadélfico ou pensilvânico, conforme o nome logo demonstra, nasceu no estado da Pennsylvania, na Walnut Street Jail, em 1776. Neste sistema, destacou-se uma penitenciária, a Eastern State Prison, na Filadélfia, hoje museu. O outro, auburniano, surgiu no estado de New York em 1797. O terceiro, chamado de progressivo ou irlandês, é em realidade um “grupo de subsistemas” criados a partir do século seguinte. Pelo primeiro sistema, o encarcerado cumpria a sua pena em isolamento total. No segundo, o condenado ficava em silêncio todo o tempo – daí o nome “silent system”. Pelo terceiro, os condenados iam “progredindo” durante o cumprimento da pena.
     Jeremy Bentham foi um filósofo inglês, apontado como o mais importante do utilitarismo. Em 1789 ele criou o panóptico, uma construção circular em que o diretor conseguia, de sua sala, enxergar todas os “internados”. Não era destinado exclusivamente a criminosos, porém, quanto ao seu uso como presídio, diz o filósofo, “uma casa penitenciária  mais particularmente é (desculpe, devo me corrigir e dizer: deveria ser) o que toda prisão poderia e, em algum grau, ao menos deveria ser: planejada ao mesmo tempo como um local de custódia segura e como um local de trabalho” (“O panóptico”, página 29). Pan-óptico: ver tudo, enxergar tudo.
     O Brasil adotou um sistema progressivo de cumprimento de pena privativa de liberdade. Com a reforma da Parte Geral ocorrida em 1984, a pena privativa de liberdade deve ser cumprida sob a forma de regimes: fechado, semi-aberto e aberto. Inicia-se o cumprimento em um deles e progressivamente vai sendo promovido a um menos severo. Exemplo: condenado a mais de 8 anos de reclusão, a pena deve ser inicialmente cumprida no regime fechado e depois de cumprida uma parte (1/6) e preenchidos outros requisitos, o condenado é promovido ao regime semi-aberto.
     O Brasil vive uma crise no sistema carcerário e isso faz muito tempo. Uma CPMI em 2008 investigou o sistema carcerário e apontou todas suas as mazelas: ela produziu  um videoclipe mostrando certas prisões e ele é impressionante. Uma CPMI (ou CPI), costuma dizer a voz popular, “não dá em nada”: nem pode dar, pois é simplesmente investigativa. Das suas conclusões saem sugestões de punições e/ou da produção de novas leis.
     O que se observa na criação de Bentham – apontada por Foucault como uma forma de controle e vigilância totais – é que o diretor (ou quem faça as suas vezes) nunca perde o condenado de vista, sempre observando-o e controlando os seus movimentos. Os presídios brasileiros têm uma arquitetura exatamente contrária ao  panóptico: o diretor não sabe nunca o que acontece no interior do presídio. Por vezes, nem os guardas penitenciários (chamados de agente de segurança penitenciária) sabem. Antes de que acontecessem rebeliões, a administração do estabelecimento carcerário (diretoria) ficava no mesmo prédio em que estavam as celas; depois delas, deslocou-se do prédio e foi parar quase na rua. Ninguém vê nada.
     Uma das razões para que as prisões estejam caóticas e não ressocializem ninguém (fato somente agora percebido pelos petistas José Eduardo Martins Cardozo [ministro da Justiça] e Dias Tóffoli [ministro do STF] por conta da condenação de "companheiros" réus na AP 470 ["mensalão"]) talvez seja esta: não há absolutamente ninguém vendo (observando, segundo queria Bentham) o que acontece no interior dos presídios. O consumo de drogas, a posse e o uso de celulares, a extorsão são acontecimentos corriqueiros.
     Seria melhor repensar a arquitetura dos presídios e aplicar os 3/5 do orçamento que não foram aplicados pelo governo federal nessa nova arquitetura. Talvez seja um começo de solução.


    

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