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O porteiro assanhado


             Ele tinha a aparência de quem já havia atingido a terceira idade e era porteiro de um prédio no centro de Campinas em que moravam muitos jovens, a maioria estudantes. No primeiro andar morava uma jovem bonita, o que aguçou a sua concupiscência (se é que lhe restava alguma...), que, (aparentemente) excitado, passou a dirigir gracejos àquela moradora, elogiando, porém com palavras de baixo calão, os seus dotes físicos.
            A moça não gostou dos “elogios” e compareceu ao 1º Distrito Policial para “registrar a queixa” e o Delegado de Polícia mandou lavrar o “t.c.o.” pela contravenção penal descrita no artigo 61[1] da lei respectiva. Remetido ao fórum, foi distribuído à 1ª Vara Criminal e incluído numa “mega-audiência”. No dia designado, atuava eu como Defensor Público e o “autor do fato”, depois de ouvir a peroração do magistrado sobre a doação a uma instituição de caridade de uma cesta básica[2], dirigiu-se a mim, acompanhado de sua esposa. Indagou-me acerca da acusação. Apanhei o “processo”. Li-o. Tentei afasta-lo de sua mulher. Disse a ele que explicaria a sós, apenas nós dois, convidando-o a nos afastarmos alguns metros. Ele se negou: disse que nada escondia de sua esposa. Insisti. Ele também. Então eu li a “acusação”: “aquela moça que mora no 1º andar do prédio em que o senhor trabalha foi à policia reclamar que, cada vez que ela passa pela portaria, o senhor a chama de ‘gostosa’ e outros nomes chulos, emitindo ainda aquele som de chupar os dentes”.
            A mulher olhou-o com tamanha raiva  que eu tive vontade de requerer ao juiz que o “perdoasse”, nada de doação de cesta básica, porque o castigo que ele certamente sofreria ao chegar em casa seria suficiente para reeduca-lo (e não é esta uma das finalidades da pena?).
            Não pude fazer tal requerimento, claro, porque era incabível tal pedido, e o porteiro assanhado não concordou em doar a cesta[3]. Talvez tenha sido denunciado e processado, mas o meu trabalho cessou ali. Imagino o que a sua mulher deve ter feito.
(Capítulo do livro "Casos de júri e outros casos", volume 2, a ser publicado.)

[1]. Importunação ofensiva ao pudor: “importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor”.
[2]. Ver “Atirando no vendedor.
[3]. Em casos assim, o “t.c.o.” retorna ao Ministério Público para o oferecimento da denúncia.

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