Quando
o Brasil foi descoberto, passaram a ter aplicação no novo território a
legislação do país descobridor, no caso, Portugal. Os códigos portugueses eram
chamados de ordenações e em geral levavam o nome do soberano. Havia as
Ordenações Afonsinas, as Manuelinas e as Filipinas. Estas últimas continham em
seu Livro V as disposições penais e foram as que tiveram mais aplicação no
Brasil, de 1603 a 1830. Ler um desses livros em sua linguagem original é um
mergulho no passado: ali o pecado era tratado como crime e essa era mesma a
nomenclatura: “peccado”. Por exemplo, no Título XIII estava escrito assim: “dos
que commettem peccado de sodomia, e com alimarias”. O Direito Penal descaradamente
mesclado coma religião católica.
A
pessoa que cometia o crime de “molície”, difícil de ser descoberto, caso fosse
condenada, perdia a metade de sua fazenda, entendendo-se por esta palavra o
conjunto de bens. Em português, há a palavra “molícia”, que significa a
automasturbação (ou onanismo) ou a heteromasturbação. Crime difícil de ser
descoberto, e pois, provado, quem ajudasse na elucidação faria jus à metade dos
bens do condenado como recompensa. Em outras passagens dessa vetusta legislação,
a mais antiga do Brasil, há promessa de recompensa para quem ajudasse na
descoberta do delito e na punição do autor.
Semanas
atrás o governo do estado de São Paulo prometeu uma recompensa aos policiais
que – de forma ampla – ajudassem na queda dos índices de criminalidade. Num
segundo momento, prometeu recompensa a quem “dedurasse” uma pessoa suspeita de
ter praticado um crime.
O
tema, como se vê, não é novo e muito polêmico. Em outro países (Estados Unidos
da América, por exemplo), as próprias autoridades oferecem – e isso há décadas
– um premio em dinheiro a quem der qualquer informação acerca do autor de um
delito. No Rio de Janeiro, uma entidade particular tem oferecido quantia em
dinheiro a quem der informações sobre alguns delitos. Aqui no estado de São
Paulo uma categoria de funcionários tinha participação na produtividade, há tempos
abolida.
O
fato de oferecer vantagem aos policiais na resolução de crimes ou aos
particulares que delatarem delitos não condiz com o arcabouço jurídico
brasileiro. O Estado tem o dever de proteger os bens jurídicos seus e dos seus
cidadãos – para isso o Brasil tem uma das cargas tributárias mais altas do
mundo (embora seja um dos BRICS) -, não se podendo valer desses expedientes anunciados
que são, no mínimo, imorais, na sua tarefa de oferecer aos cidadãos paz
pública.
Se
alguém souber da existência de um crime e quiser delatar o autor, poderá
fazê-lo, mas o Estado não o obriga a tanto e nem poderá presentear quem o fizer.
Porém, se ele for apontado como testemunha do evento, terá a obrigação dizer a
verdade de tudo que souber, pois nesse caso é testemunha.
Algumas
pessoas puseram-se contra as medidas anunciadas e o fizeram por motivo de ordem
prática: a polícia poderá “fabricar” culpados (como já “fabricou” na época da
ditadura e nos “autos de resistência”) para obter a vantagem prometida; do
mesmo jeito, os denunciantes poderão delatar pessoas “inocentes” ou de que
tenham dúvida da culpa apenas na tentativa de receber a recompensa. Estas são
objeções de ordem puramente prática; a objeção maior é de ordem moral (para não
dizer jurídica – ética, numa palavra): o Estado não pode (deve) prostituir a
função pública, delegando-a a particulares sob uma forma abjeta.
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