Segundo
a teoria tridimensional do direito, de autoria de Miguel Reale, do atrito entre
o fato e o valor surge a norma, mas o processo criativo, por assim dizer,
prossegue, pois entra em ação a interpretação, que, em Direito Penal, dependendo
de quem faz a interpretação (quanto ao sujeito), manifesta-se sob os nomes de
autêntica, judicial (ou jurisprudencial) e doutrinária. Essa forma de “dizer o
direito” conhece limites, que em Direito Penal são rígidos, impostos pelo
princípio da reserva legal.
De
uma época aos dias atuais, os fatos têm atropelado a doutrina – tão farta no
Brasil (qualquer um se propõe a escrever um livro e uma editora qualquer se
dispõe a publicá-lo – talvez isso se deva ao enorme número de faculdades de
direito existentes no Brasil).
O
primeiro dos “atropelamentos” ocorreu com o caso “Eliza Samúdio”. O crime de
homicídio é classificado como material, aquele em que há um distanciamento
lógico e cronológico entre a conduta e o resultado: há a conduta e esta produz
um resultado (natural). “Não há crime sem corpo”: era quase um brocardo
jurídico. O Código de Processo Penal possui regras sobre o assunto, estipulando
que a ausência do exame de corpo de delito não pode ser suprido pelas palavras
do (s) acusado (s). Anteriormente, em Campinas, no dia 24 de agosto de 1999,
foi encerrado o julgamento do mandante de um crime de homicídio em que o corpo
nunca apareceu. Ficou conhecido como “caso Alba”: a mando de seu marido, o
dentista Paulo Figueiredo, ela foi morta e o seu corpo desapareceu. O executor
e o intermediário foram julgados e condenados; na data acima, o mandante foi
julgado e condenado a 18 anos de reclusão[1].
O caso Eliza Samúdio trilhou o mesmo caminho: alguns dos envolvidos já foram
condenados. Porém, avançou num ponto: a juíza criminal, como se fosse uma juíza
cível num caso de ausência, decidiu que ela havia mesmo morrido e determinou a
expedição de certidão de óbito.
O
segundo dos “atropelamentos” ocorreu nas Alagoas: os quatro seguranças de PC
Farias foram julgados sob a acusação de haver por omissão participado do crime
de homicídio de que foi vítima o tesoureiro de Fernando Collor de Mello.
Sabe-se que quanto à conduta do sujeito ativo, o crime é doutrinariamente
dividido em comissivo, omissivo (próprio) e comissivo por omissão (ou omissivo
impróprio). No omissivo próprio, a conduta é negativa (“deixar de...”). No
omissivo impróprio (ou comissivo por omissão), a conduta é positiva e a omissão
é forma de produzir o resultado. O homicídio é um crime comissivo: o verbo do
tipo já deixa bem claro isso (matar alguém). Nada impede, porém, que o resultado
seja alcançado por omissão: o exemplo sempre lembrado pela doutrina é o da mãe
que deixa de alimentar o filho de tenra idade provocando a sua morte. Aqui há,
evidentemente, o dolo de homicídio e a mãe é autora. Como tipificar na norma a
conduta de quatro seguranças que não impediram que o seu patrão não fosse
morto? Eles quiseram o resultado? Se eles quiseram o resultado e, assim,
deixaram que os matadores agissem eles são partícipes tanto quanto os que
conjugaram o verbo do tipo. Felizmente, eles foram absolvidos e os livros de
Direito Penal não precisarão ser reescritos nesse ponto.
O
mesmo, todavia, não se poderá dizer quanto ao homicídio sem corpo, bem como ao
reconhecimento da morte da vítima num processo criminal, com enorme repercussão
no Direito Civil.
[1].
Esse caso rendeu algo que pouquíssimas
vezes ocorre: foi interposto recurso de apelação e foi improvido. Ao
saber do resultado, o condenado foi à Vara do Júri apresentar-se para iniciar o
cumprimento da pena.
Comentários
Postar um comentário