No
bairro Vila Nogueira – mais especificamente, entre a Vila Nogueira e o Jardim
Santana – dois jovens irmãos foram mortos por vários disparos de arma de fogo;
um deles era deficiente e utilizava, para deslocar-se, um triciclo motorizado.
Não
somente o distrito policial do bairro, como o Setor de Homicídios e Proteção à
Pessoa da Delegacia Seccional de Polícia, investigaram o duplo homicídio,
inclusive com violação – autorizada – do sigilo telefônico de um suspeito e não
se conseguiu determinar a autoria. Uma tênue variante investigativa apontava
que havia uma dívida entre os dois irmãos e um pós-adolescente – rapaz de 19
anos – daquele bairro sobre a venda de um carrinho de cachorro-quente. A
autoridade policial, depois de muito investigar, preferiu não indiciar ninguém:
relatou o inquérito, requerendo o arquivamento dos autos por ter permanecido a
autoria desconhecida.
O
juiz da Vara do Júri encaminhou o inquérito policial ao Ministério Público para
manifestação, como é de lei. O Promotor de Justiça – substituto –, em vez de
endossar o requerimento da autoridade policial, ou requerer a realização de
outras diligências, o que seria mais sensato, preferiu denunciar o pós-adolescente
por dois homicídios duplamente qualificados. Seria desnecessário dizer que a
denúncia foi recebida e o acusado interrogado. Ao ser inquirido sobre a dupla
imputação, narrou ao juiz que no dia e na hora dos fatos, que tinham ocorrido
perto de onde morava, ele estava em sua casa, na presença de sua mãe e de sua
namorada; tinham até ouvido os disparos. O prazo de defesa prévia, em razão de
alterações que ocorreram na PAJ, com redistribuição de processos, desgraçadamente
acabou transcorrendo sem que ela fosse apresentada.
A
instrução foi realizada, e nenhuma das testemunhas arroladas pela acusação
soube apontar com precisão – porque ninguém tinha presenciado os fatos – o
autor da dupla morte. Foi veiculada novamente a versão de que pendia um débito
entre as vítimas e o agora réu.
Coube
a mim a apresentação das alegações impropriamente chamadas de finais[1]. O
Ministério Público, por outro Promotor de Justiça, havia requerido a pronúncia
do réu para que o Tribunal do Júri julgasse pelos dois crimes. Lendo o seu
interrogatório judicial e constatando que ele apresentara um álibi,
incontinenti dirigi-me ao local em que morava. Era julho, inverno, com o dia
escurecendo mais cedo. Foi difícil localizar a casa do réu: era numa favela
urbanizada, com uma numeração completamente estapafúrdia. Depois de muito
rodar, localizei a casa. Bati palmas. Uma mulher me atendeu. Perguntei pelo
réu. Respondeu que ele havia acabado de chegar do trabalho e estava se banhando.
Esclareceu-me que era seu filho. Disse a ela que aguardaria. Esperei encostado
no carro.
Depois
de pouco tempo, o acusado veio conversar comigo. Apresentei-me. Relatei em que
situação estava o processo. Perguntei se era verdadeiro o que dissera ao juiz
quando interrogado. Jurou-me que sim. Pedi o nome das pessoas que estavam com
ele. Também os endereços. Ele me forneceu. Adverti-o dos riscos se fosse
mentira. Garantiu-me: era verdade.
No
dia seguinte, elaborei as alegações finais, apresentando, como matéria
preliminar, um pedido de conversão do julgamento em diligência a fim de que
fossem ouvidas aquelas pessoas referidas pelo acusado no interrogatório
judicial, na busca da verdade real. O juiz deferiu o pedido, designando data
para ouvi-las. Elas foram ouvidas e confirmaram o álibi do acusado.
Voltaram
os autos do processo ao Ministério Público e o mesmo Promotor de Justiça que
houvera feito as alegações e requerido a pronúncia do acusado pelo duplo
homicídio qualificado, refez a sua opinião e requereu a impronúncia do acusado.
Graças à providência tomada e, por que não
dizer, a um juiz de espírito aberto às pretensões da defesa (o que, hoje em
dia, não é muito comum encontrar...), foi um inocente poupado de sentar-se no
banco dos réus perante os sete jurados. Se tivesse, porém, dependido unicamente
daquele Promotor que fez a denúncia, e que felizmente apenas fez isso no
processo, a esta altura o acusado poderia estar preso em regime fechado. A
atitude do Promotor que o denunciou me fez lembrar uma frase de Herman Hesse:
“o senhor é promotor. É incompreensível para
mim que um homem possa ser promotor. O senhor vive de acusar e pedir condenação
para os outros, na maioria das vezes para uns pobres diabos”[2].
Felizmente,
nem todos são assim.
(Capítulo do livro "Casos de júri e outros casos", Editora Millennium.)
[1] . As alegações finais,
previstas no artigo 500 do Código de Processo Penal, são cabíveis nos processos
por crimes punidos com reclusão, exceto os previstos em legislação especial,
como o crime de tráfico de entorpecente, e após a sua apresentação, o processo
é encaminhado ao juiz para que profira a sentença final; já nos processos de
competência do tribunal do júri (dolosos contra a vida, consumados ou
tentados), após a apresentação das alegações, previstas no artigo 406 do CPP,
os autos vão ao juiz para que decida se o réu deve ou não ser julgado pelos
jurados. Portanto, não são alegações finais. Nessa parte, o Código de Processo
Penal foi profundamente alterado por leis do ano de 2008.
[2] . “O lobo da estepe”,
páginas 187 e 188.
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