Pular para o conteúdo principal

A espada do samurai

             
                        Ele era garoto de programa ("lover boy"), embora negasse tal condição. Pesava sobre si acusação de haver matado um homem com quem tinha ido morar numa casa no bairro Cambuí.
                        O fato aconteceu assim: casado havia tempo e com filhos, tendo um bom emprego numa universidade pública, a vítima separou-se de sua mulher e assumiu a sua homossexualidade. Conheceu esse garoto de programa e levou-o para morar com ele. Desentenderam-se (esta é a versão do acusado) numa noite de sexta-feira e foram à agressão; atracaram-se. A vítima atirou-lhe um cinzeiro. O acusado apanhou uma espada que enfeitava uma das paredes da sala e com ela desferiu diversos golpes na vítima, matando-a. Deixou o local. Esqueceu de apagar a luz da área externa da cozinha.
                        No sábado pela manhã, uma vizinha viu a luz acesa e pensou que fora um simples esquecimento. No domingo a luz permanecia acesa. Olhando por sobre o muro, viu que pelo vitrô da cozinha, que estava aberto, saíam moscas (mais parecia cena de um filme baseado em livro de Stephen King). Na segunda-feira, continuava a luz acesa e as moscas saindo. Ela telefonou para um parente do vizinho, a polícia foi acionada, a porta aberta e a surpresa: o morador da casa estava morto no sofá da sala desde a sexta-feira. As investigações descobriram o autor do fato, ele confessou o crime, foi denunciado, novamente confessou (desta vez perante o juiz).
                        Ele veio conversar comigo na PAJ e ao bater os olhos nele já desconfiei que padecia de alguma enfermidade; depois da primeira tossida, não me contive e indaguei se ele sofria alguma doença. Sim, ele responde, sou aidético. Pedi que ele trouxesse todos os exames e receituários; as receitas impressionavam, pois era a época do “coquetel AZT”: ele ingeria uns doze remédios por dia para controlar a doença. Imediatamente, apresentei toda essa documentação médica ao juiz e pedi que fosse juntada ao processo.
                        A defesa em plenário não foi feita por mim e sim por outro Procurador. A tese principal, obviamente, foi a legítima defesa, rejeitada pelos jurados; mas a tese subsidiária, o homicídio privilegiado, foi amplamente aceita pelos jurados, e, em razão disso, o juiz presidente da sessão impôs-lhe a pena de 4 anos de reclusão, fixando o regime aberto desde o início.
                        Fez-se justiça.
 

Capítulo do livro "Casos de júri e outros casos"- Editora Millennium.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A assessora exonerade

Um fato tomou a atenção de muitos a partir de domingo quando uma assessora “especial” do Ministério da Integração Racial ofendeu a torcida do São Paulo Futebol Clube e os paulistas em geral. Um breve resumo para quem não acompanhou a ocorrência: a final da Copa do Brasil seria – como foi – no Morumbi, em São Paulo. A Ministra da Integração Racial requisitou um jato da FAB para vir à capital na data do jogo, um domingo, a título de assinar um protocolo de intenções (ou coisa que o valha) sobre o combate ao racismo (há algum tempo escrevi um texto sobre o racismo nos estádios de futebol). Como se sabe, as repartições públicas não funcionam aos domingos, mas, enfim, foi decisão da ministra (confessadamente flamenguista). Acompanhando-a veio uma assessora especial de nome Marcelle Decothé da Silva (também flamenguista). Talvez a versão seja verdadeira – a assinatura do protocolo contra o racismo – pois é de todos sabido que há uma crescente preocupação com o racismo nos estádios de fu

Por dentro dos presídios – Cadeia do São Bernardo

      Tão logo formado em Ciências Jurídicas e Sociais e tendo obtido a inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil, prestei auxílio num projeto que estava sendo desenvolvido junto à Cadeia Pública de Campinas (esta unidade localizava-se na avenida João Batista Morato do Canto, n° 100, bairro São Bernardo – por sua localização, era apelidada “cadeião do São Bernardo”) pelo Juiz de Direito da 2ª Vara Criminal (que cumulava a função de Corregedor da Polícia e dos Presídios), Roberto Telles Sampaio: era o ano de 1977. Segundo esse projeto, um casal “adotava” uma cela (no jargão carcerário, “xadrez”) e a provia de algumas necessidades mínimas, tais como, fornecimento de pasta de dentes e sabonetes. Aos sábados, defronte à catedral metropolitana de Campinas, era realizada uma feira de artesanato dos objetos fabricados pelos detentos. Uma das experiências foi uma forma de “saída temporária”.       Antes da inauguração, feita com pompa e circunstância, os presos provisórios eram “aco

Matando por amor

Ambas as envolvidas (na verdade eram três: havia um homem no enredo) eram prostitutas, ou seja, mercadejavam – era assim que se dizia antigamente – o próprio corpo, usando-o como fonte de renda. Exerciam “a mais antiga profissão do mundo” (embora não regulamentada até hoje) na zona do meretrício [1] no bairro Jardim Itatinga.             Logo que a minha família veio de mudança para Campinas, o que se deu no ano de 1964, a prostituição era exercida no bairro Taquaral, bem próximo da lagoa com o mesmo nome. Campinas praticamente terminava ali e o entorno da lagoa não era ainda urbanizado. As casas em que era praticada a prostituição, com a chegada de casas de família, foram obrigadas a imitar o bairro vermelho de Amsterdã:   colocar uma luz vermelha logo na entrada da casa para avisar que ali era um prostíbulo. Com a construção de mais casas, digamos, de família,   naquele bairro, houve uma tentativa de transferir os prostíbulos para outro bairro que se formava, mais adiante