Lembro que o seu nome
era Marco Antonio - um nome de imperador romano. Ele fora preso pela prática de um crime patrimonial e,
naquela época, os “presos provisórios
ficavam recolhidos na “carceragem” do 2º Distrito Policial ou na do 5º
Distrito Policial, ambas superlotadas. Na cela em que ele foi colocado, no 2º
DP, estavam muitos outros presos na
mesma situação de “provisórios”. Alguns deles estavam preparando uma fuga: fora
introduzida ali por uma visita uma serra e eles estavam serrando um
dos "gomos" da grade da porta. Era um trabalho que demandava muito tempo e, à
medida que o ferro ia sendo serrado, eles disfarçavam o buraco pondo uma pasta feita com sabonete e cinza de
cigarro (que parece muito com a cor do ferro). No período noturno, era feito o
“bate-grade”: o carcereiro passava em todas as celas (dependendo do tamanho era
chamado de “xadrez”), batendo com um pedaço de ferro nas grades. Um som oco
delatava o “trabalho”; por vezes, se o ferro da grade já estivesse muito
serrado, ele se soltaria com a batida.
Na cela em que Marco
estava, um dos ferros já havia sido bastante serrado e quando ali foi posto mais um preso. Era uma pessoa
brincalhona, expansiva, de gestos largos e, num desses gestos, sem querer ele bateu
a mão no ferro cortado: este, como estava quase somente fixo pela mistura
sabonete/cinza, caiu ao chão, fazendo o barulho característico, que chamou a
atenção do carcereiro. Este veio, examinou a grade e saiu para buscar a escolta
de policiais militares a fim de transferirem os presos para outras celas. Foi o
quanto bastou: o preso que frustrou a fuga foi literalmente massacrado pelos que planejavam a fuga. Quando
o carcereiro retornou com a escolta, viu a vítima morta e quis saber quem a
havia matado. Marco havia sido “escalado” sob coação para assumir a autoria.
Era comum isso: os presos obrigarem outro a assumir a autoria de um crime[1].
Marcos foi autuado em
flagrante ali mesmo no 2º Distrito Policial. Denunciado por homicídio
qualificado, no dia de seu interrogatório judicial ele foi acompanhado por mim
e chorava como criança, diversas vezes repetindo o magistrado que não fora ele o autor da morte, que foram os
outros presos, que ele fora coagido a assumir a autoria do crime contra a vida.
É lição banal que um homem sozinho é incapaz de matar outro, a não ser que
exista uma diferença de forças muito grande entre eles. Alguns dos outros
presos que estavam na mesma cela naquele dia foram ouvidos, uns poucos fora de
Campinas, pois já haviam sido transferidos para outras cidades. Como acontece,
em casos que tais, uns poucos dizem não lembrar, ou que não viram. Com base
somente em indícios, especialmente por conta de seu interrogatório policial, Marco foi pronunciado.
A sua defesa em plenário
foi feita por um colega e ele foi condenado: o juiz impôs-lhe a pesada pena de
18 anos de reclusão, a ser cumprida no regime fechado. Disse esse colega que
era possível ouvir o choro de Marcos a partir da “celinha” que fica ao lado do
salão do júri. Era praticamente um uivo.
O colega interpôs recuso
de apelação e o Tribunal de Justiça deu provimento para que Marcos fosse
novamente julgado. No segundo julgamento ele foi absolvido: foi possível agora
ouvir os seus gritos de alegria, segundo contou o colega que atuou em sua
defesa.
(Capítulo do livro "Casos de júri e outros casos", a ser publicado.)
[1].
Ver “Iran”, em “Casos de júri e outros casos”. Às vezes não precisa nem ser
crime de morte: um túnel que está sendo cavado, um aparelho celular.
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