Não
era, conforme pode parecer, um apelido politicamente incorreto; afinal, ele não
tinha nenhuma deficiência física, pelo contrário: o seu deambular era perfeito.
Chamou-me logo a atenção a discrepância entre o apelido e a sua condição
física.
Ele
era acusado de haver tentado matar um rapaz com quem consumira entorpecente
numa “balada” que perdurou toda uma noite; a vítima ficara paraplégica, pois o projétil
a atingira na coluna vertebral.
Segundo
a versão oferecida em declarações pela vítima – não havia testemunha presencial
– ela havia apanhado uma caixa de cerveja em lata de sua casa e fora a um posto
de gasolina nas proximidades para vendê-la e com o dinheiro obtido comprar
entorpecente. “Zé Manco” – a vítima o chamava assim – ocupando um “fusca”,
estivera no posto para abastecer o carro e entabulara conversa com ela;
simpatizaram um com o outro e saíram para uma “rodada de consumo de entorpecente”;
a utilização da droga perdurou por toda a noite; “Zé Manco” fornecera o
entorpecente, cocaína.
Dias
após, a vítima estava caminhando sozinha por uma rua quando ao seu lado parou
um veículo ocupado por “Zé Manco” e outras pessoas, que passaram a, sem mais
aquela, a agredi-la; ela tentou fugir e “Zé Manco”, também sem nenhum motivo,
efetuara disparos de arma de fogo contra ela, tendo um dos projéteis
atingido-a na coluna, deixando-a paraplégica.
A
falta de motivo era assustadora: ninguém sai atirando em outrem depois de
pacificamente passarem uma noite consumindo entorpecente.
Numa
das conversas que tive com ele, em que ele negou haver atirado na vítima, perguntei
a origem do apelido e ele me explicou que talvez fosse pelo fato de ter ficado
algum tempo com uma das pernas engessada. Motivo do engessamento: havia levado
um tiro nessa perna.
Um
dia antes do julgamento, fui ler os autos originais, pois as cópias que eu
tinha parecia que estavam incompletas, e reparei numa folha de antecedentes de
um irmão do réu que me passara despercebida; o documento registrava antecedente
pelo crime de tráfico de entorpecente; e mais: registrava que ele tinha uma
deficiência física, que o obrigava a mancar. Eu nunca soube porque a autoridade
policial requisitara e juntara ao inquérito a folha de antecedentes do irmão do réu.
No
dia do julgamento, a vítima entrou no plenário de cadeira de rodas e isso causa
um impacto muito grande nos jurados; temi pela sorte do acusado. Indagado pelo
juiz, relatou a história da caixa de cerveja no posto, da noite de consumo com
“Zé Manco”, do dia em que foi atingido pelo projétil. Apontou “Zé Manco”, que
obviamente ali estava presente, como o autor dos disparos. Dada a palavra à
defesa, indaguei se tinha havido algum incidente entre eles e a resposta foi
negativa. Ofensa? Compra de entorpecente sem pagar? A resposta era sempre não.
Sem motivo, portanto.
Eu
havia arrolado testemunhas de defesa – de “antecedentes”, como se diz no jargão
forense – e uma delas era uma vizinha de longa data de “Zé Manco” (praticamente
o vira nascer); do fato nada sabia. Indaguei se ela o conhecia e a resposta foi
afirmativa; se ele era boa pessoa: trabalhador, foi a resposta (declinou até o
local em que trabalhava: Casas Bahia, entregador de móveis); além disso, estudava
no período noturno. Perguntas cruciais: ele tinha algum irmão? Sim. Esse irmão
teve algum envolvimento com a polícia? Sim. Motivo? Não sei o motivo, foi a
resposta. Ele tem alguma deficiência física? Tem, sim senhor: teve paralisia
infantil e manca bastante de uma perna.
Estavam
prontos os ingredientes para o desenvolvimento da tese de defesa:
provavelmente, argumentei, a vítima se enganara, acusando a pessoa errada; quem
lidava com entorpecente e mancava de uma perna era o irmão do réu. Assim
desenvolvi toda a sua defesa.
Resultado
da votação: absolvido por quatro votos e três.
Saímos
do plenário com ele negando a prática do fato: na escadaria do fórum ele
continuava apregoando a sua inocência.
Comentários
Postar um comentário