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O atirador gago



                        O Código Penal descreve apenas crimes consumados: matar alguém; subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel. Porém, se o sujeito ativo não conseguir atingir a consumação – chamada de meta pretendida, ou “meta optata” – por circunstâncias alheias à sua vontade, ele é punido pelo crime tentado; a pena prevista para o crime tentado (ou, como preferem dizer alguns, “tentativa de crime”) é a mesma do crime consumado, porém diminuída de um a dois terços. A doutrina divide o caminho do crime – ou “iter criminis” – percorrido pelo sujeito ativo em três, por assim dizer, frações: cogitação, preparação e consumação. Com a primeira não se preocupa o Direito Penal, pois “cogitationis poenam nemo patitur”; em regra, nem com o segundo, mas esta regra possui exceções, em que se pune a preparação: uma delas está no crime “petrechos para falsificação”[1]; finalmente, quando entra na execução, pode conseguir a consumação ou não.
                        Porém, há duas situações em que, iniciada a execução, o resultado não sobrevém por vontade do sujeito ativo. São elas a desistência voluntária e o arrependimento eficaz[2], em que fica afastada a punição pela tentativa, remanescendo a punição pelos atos já praticados (num furto no interior de uma residência: se desistir de prosseguir na execução – o que caracteriza a falta de consumação por vontade do agente – o sujeito ativo somente responderá pela violação de domicílio).
                        Após ler os autos que cuidavam de uma tentativa de homicídio simples, concluí que a tese da desistência voluntária cairia como uma luva em plenário: afinal, o acusado, embora tivesse uma arma de fogo – um revólver calibre 32 – com carga completa, após discutir com a vítima no interior de um bar, desferiu contra ela um tiro, apenas um, que a atingiu no ombro, e, vendo-a retirar-se do local andando normalmente, não prosseguiu na execução.
                        E o acusado era gago: era previsível uma dificuldade muito grande para que ele respondesse as perguntas que lhe seriam formuladas pelo magistrado durante o interrogatório em plenário. E assim foi. O ato judicial, segundo eu soube, demorou mais do que o normal.
                        Foram feitos os debates: o Promotor de Justiça sustentando a acusação, requerendo a condenação do acusado nas penas do homicídio simples tentado; a defesa, que foi feita por um colega, pugnando pelo reconhecimento da desistência voluntária, o que faria com que se operasse a desclassificação para o crime de lesões corporais.
                        Os jurados convenceram-se, por maioria, de que efetivamente o acusado, embora pudesse, não quis prosseguir na execução daquele crime contra a vida que houvera iniciado, e afastaram a figura da tentativa.
                        A condenação foi pelo crime de lesões corporais leves.
                        Mas o réu, embora hesitasse ao falar, gaguejando, para atirar ele não hesitava: tempos após fui novamente nomeado para defendê-lo, outra vez numa tentativa de homicídio que tinha todas as características de desistência voluntária. A tese seria a mesma, obviamente.
                        Dias antes da sessão de julgamento, estive no cartório do júri e ali encontrei um ex-aluno, que ainda não havia se formado e que estagiava na Promotoria de Justiça do Júri, folheando o processo anterior em que os jurados haviam reconhecido que o réu desistira de prosseguir na execução. Aguçou-me curiosidade, mas não levei a idéia adiante. Algum tempo depois, saindo da sala de aula, fui abordado por uma oficial de justiça que, pedindo desculpa pelo local inapropriado, mas justificando-se com a proximidade da sessão de julgamento, intimou-me acerca de documentos cuja juntada aos autos fora pedida pelo Ministério Público. Tão logo que pude, fui ao cartório examinar os documentos: eram cópias da denúncia e do interrogatório judicial do processo anterior. O mesmo Promotor que atuara no julgamento anterior e que atuaria no presente havia pedido a juntada. Indignei-me por um motivo óbvio: por que ele não pediu a juntada também da sentença que desclassificou o fato de tentativa de homicídio para lesões corporais? A meu ver, apenas para iludir os jurados.
                        No dia da sessão, tão logo foram abertos os trabalhos, pedi a palavra e, após atacar vigorosamente aquela atitude, tomadas para iludir os jurados, pedi que ficasse constando em ata. Dada a palavra ao Promotor, ele requereu, talvez arrependido que fossem aqueles documentos desentranhados dos autos, pleito prontamente deferido.
                        Depois de interrogado o acusado – com todos os percalços da gagueira –, fomos aos debates e os jurados, mais uma vez, reconheceram que havia ocorrido uma desistência voluntária.
                        Ao que consta, ele não atirou em mais ninguém – desistiu antes mesmo de começar.
(Capítulo do livro "Casos de júri e outros casos".)



[1] . Artigo 294: “fabricar, adquirir, fornecer, possuir ou guardar objeto especialmente destinado à falsificação de qualquer dos papéis referidos no artigo anterior”, com a pena de reclusão, de 1 a 3 anos, mais multa. Como se vê, é um ato preparatório em relação à falsificação, porém punido como crime autônomo.
[2] . Artigo 15: “o agente que, voluntariamente desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza, só responde pelos atos já praticados”.

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