Pular para o conteúdo principal

156 anos de reclusão - segunda parte



            No texto anterior, de forma muito superficial abordei o assunto “concurso de crimes” e agora vou desenvolvê-lo para um melhor entendimento do que escrevi.
            O concurso – do verbo concorrer – existe sob duas formas: de pessoas e de crimes. O primeiro está disciplinado no artigo 29 do Código Penal: “quem de qualquer forma concorre para o crime, incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”. É neste campo de estudo que está a teoria do domínio do fato, tão brilhantemente desenvolvida por Claus Roxin e que foi utilizada para condenar alguns do “núcleo politico” do “mensalão”(Ação Penal 470).
            O outro tipo de concurso é o de crimes e existe sob três formas: material (ou real), formal (ou ideal) e crime continuado; eles estão disciplinado nos artigos 69, 70 e 71 do Código Penal. O mais comum é o material (artigo 69 do CP) e por ele todas as penas aplicadas aos crimes que uma pessoa praticou são somadas. Exemplo: uma pessoa comete um crime de roubo simples (artigo 157, “caput”, pena de 4 a 10 anos de reclusão), um de homicídio simples (artigo 121, “caput”, pena de 6 a 20 anos de reclusão) e um de estupro (artigo 213, pena de 6 a 10 anos de reclusão). Ao condena-la, o juiz deverá individualizar a pena de cada crime e, ao final, soma-las. Se ele impuser a pena mínima cominada a cada delito ter-se-á uma pena final de 16 anos (4 pelo roubo, 6 pelo homicídio e 6 pelo estupro). Detalhe: várias ações, vários crimes – e diferentes.
            A segunda modalidade de concurso é o formal (artigo 70, “caput” do CP) e de sua leitura decorre que a pessoa, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, da mesma espécie ou não. O exemplo clássico é o do motorista que dirigindo em alta velocidade um veículo de transporte coletivo provoca um acidente, matando uma pessoa e ferindo três. Cometeu um homicídio culposo e três lesões corporais culposas (artigos 302 e 303 do Código de Trânsito). O juiz, ao condená-lo, escolherá dentre as penas aplicadas a mais grave (no caso, do homicídio) e a aumentará entre 1/6 até a metade. Detalhe: a ação não poderá ser dolosa e os resultados frutos de desígnios autônomos: neste caso, a lei penal manda que se aplique a regra do concurso material.
            O último, crime continuado, é entre eles o que tem uma história: ele surgiu, segundo aponta a doutrina, para minimizar a aplicação a punição, pois ao terceiro furto, não importando o valor da coisa subtraída, era imposta a pena de morte. Os aplicadores da lei penal começaram a afirmar que o terceiro furto não era outro crime, mas sim continuação dos demais e com isso evitavam a aplicação da pena de morte.
            Existem alguns requisitos para que seja reconhecido e eles estão no artigo 71 do Código Penal: várias ações (ou omissões), vários resultados, crimes da mesma espécie, próximos no tempo e no espaço e outras circunstâncias (que a lei não especifica). Próximos no tempo: pela construção jurisprudencial, até 30 dias entre um crime e outro; próximos no espaço: na mesma cidade, na mesma região administrativa, em cidades próximas. Discutia-se antes da reforma penal de l984 se os delitos que atingiam bens personalíssimos (como a vida, por exemplo) podiam ter reconhecida a continuidade delitiva. Não se admitia. Depois da reforma, a doutrina maciçamente começou a entender que se podia ser reconhecido o crime continuado. Exemplo: três furtos simples (artigo 155, “caput”, com pena de reclusão, de 1 a 4 anos) – a cada fato o  juiz aplica 1 ano de reclusão e, reconhecendo o crime continuado, apanhará uma das penas – qualquer uma, pois são iguais – e a aumentará entre 1/6 a 2/3. Neste exemplo, 1/5.
            Há um senão: se foram crimes praticados mediante o emprego de violência ou grave ameaça, o juiz pode triplicar a pena (desde, é óbvio, que tenham sido praticados mais de três crimes). Exemplo: o sujeito ativo praticou 4 estupros e o juiz o condena por cada um a 6 anos de reclusão: a pena poderá ser triplicada, atingindo 18 anos. 
            Em grau de recurso, é possível que o Tribunal de Justiça reconheça os requisitos do crime continuado na ação dos policiais militares e faça um “ajuste” da pena, nada impedindo que em vez de simplesmente aumenta-la entre 1/6 e 2/3, a triplique.

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Câmeras corporais

A adoção da utilização de câmeras corporais por policiais militares gerou – e gera – alguma controvérsia no estado de São Paulo, tendo sido feita uma sugestão que mais lembra um pronunciamento de Eremildo, o Idiota (personagem criado por Elio Gaspari): “os soldados da força policial usariam as câmeras, mas as ligariam apenas quanto quisessem”. Essa tola sugestão tem como raiz o seguinte: nas operações em que pode haver alguma complicação para o policial ele não aciona a câmera; mas demais, sim. Apenas a título informativo, muitos países do mundo tem adotado essa prática: em algumas cidades, como, por exemplo, nos Estados Unidos, até os policiais que não trajam fardas estão utilizando esses aparatos. Mas, a meu ver, o debate tem sido desfocado, ou seja, não se tem em vista a real finalidade da câmera, que é a segurança na aplicação da lei penal, servindo também para proteger o próprio agente da segurança pública (tendo exercido, enquanto Procurador do Estado, a atividade de Defensor...

A memória

A BBC publicou tempos atrás um interessante artigo cujo título é o seguinte: “O que aconteceria se pudéssemos lembrar de tudo” e “lembrar de tudo” diz com a memória. Este tema – a memória- desde sempre foi – e continua sendo – objeto de incontáveis abordagens e continua sendo fascinante. O artigo, como não poderia deixar de ser, cita um conto daquele que foi o maior contista de todos os tempos, o argentino Jorge Luis Borges, denominado “Funes, o memorioso”, escrito em 1942. Esse escritor, sempre lembrado como um dos injustiçados pela academia sueca por não tê-lo agraciado com um Prêmio Nobel e Literatura, era, ele mesmo, dotado de uma memória prodigiosa, tendo aprendido línguas estrangeiras ainda na infância. Voltando memorioso Funes, cujo primeiro nome era Irineo, ele sofreu uma queda de um cavalo e ficou tetraplégico, mas a perda dos movimentos dos membros fez com que a sua memória se abrisse e ele passasse a se lembrar de tudo quanto tivesse visto, ou mesmo (suponho) imaginado...

Legítima defesa de terceiro

Um dos temas pouco abordados pelos doutrinadores brasileiros é o da legítima defesa de terceiro; os penalistas dedicam a ele uma poucas páginas, quando muito. Essa causa de exclusão da ilicitude vem definida no artigo 25 do Código Penal: “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Nessa definição estão contidos os elementos da causa de exclusão em questão: uso moderado dos meios necessários; existência de agressão atual ou iminente; a direito seu ou de outrem. Como se observa facilmente, a defesa é um repulsa a uma agressão, ou seja, é uma reação a uma agressão, atual (que está acontecendo) ou iminente (que está para acontecer). Trata-se, a causa de exclusão em questão, de uma faculdade que o Estado põe à disposição da pessoa de defender-se pois em caso contrário a atuação estatal na proteção dos cidadãos tornar-se-ia inútil. Não é uma obrigação, é uma faculdade. Caso, na...