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Dois presos e duas medidas



            Eles foram sujeitos ativos da mesma infração penal: um crime patrimonial violento, o roubo. Embora desarmados, ameaçaram a vítima de impor-lhe um mal grave, não especificado (ao estilo: se você não entregar o celular você vai ver...). Não tiveram: mal caminharam alguns passos foram interceptados pelos componentes de uma guarnição da Polícia Militar e, levados ao plantão policial, foram autuados em flagrante e encaminhados a um centro de detenção provisória.
            Durante a instrução criminal, a família de um deles procurou o defensor dativo que atuava em seu prol e relatou ao profissional que aquele preso tinha “antecedentes” mentais: estivera, tempos atrás, internado um hospital psiquiátrico (anteriormente denominado “hospício”) pois tivera um "surto". Disgnosticado como esquizofrenico, permaneceu internado durante alguns dias, pois o surto que tivera fora controlado, e o médico que cuidou dele, ao lhe dar alta, prescreveu alguns medicamentos que ele deveria ingerir diariamente.
            Feito o relato ao profissional advogado, este optou por requerer ao juiz criminal a realização de um exame pericial; para embasar o seu pedido, apresentou um comprovante da internação de tempos atrás. O juiz deferiu o pedido e o “assaltante” foi examinado: na conclusão do laudo, o perito afirmou que “o examinando” era efetivamente portador de doença mental, especificou-a e encaminhou o laudo pericial ao juízo. Tendo em vista a conclusão, o magistrado absolveu-o (da pena),  impondo-lhe todavia medida de segurança consistente em internação em estabelecimento psiquiátrico apropriado pelo prazo mínimo de 1 ano. Ao final desse ano, novamente submetido a exame pericial, o médico do estabelecimento estadual concluiu que a doença persistia (é incurável) e a medida de segurança foi prorrogada por mais 1 ano. Ao final desse prazo, novo exame pericial, a mesma constatação, mais 1 ano de medida. E lá se foram 6 anos.
            O outro preso não tinha nenhuma doença mental e o juiz condenou-o a cumprir “em estabelecimento penal apropriado” (para usar o jargão forense) a pena mínima prevista para o crime cometido: 5 anos e 4 meses de reclusão no regime inicialmente fechado (embora, pela quantidade de pena, coubesse o semi-aberto). Ele cumpriu 1/6 da pena (aproveitando-se da detração) e foi (não imediatamente, claro) promovido ao regime semi-aberto, em que cumpriu mais um 1/6, sendo promovido ao regime aberto. Como não existia Casa do Albergado, em que ele deveria cumprir a pena, foi permitido a ele que a cumprisse em PAD – prisão albergue domiciliar, até que, pelo total cumprimento da “reprimenda”, a pena foi extinta pelo cumprimento.
            Aos dois presos, duas medidas: para um, a pena, para o outro, medida de segurança. Ambas são consideradas “medidas penais” (há quem as chame de “sanções penais”).
            Esta é uma história de ficção, baseada todavia naquilo que dispõe a legislação penal: o Código Penal, o Código de Processo Penal e a Lei de Execução Penal.



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